sábado, 15 de dezembro de 2007

Do ônibus até a casa

Desço do ônibus antes do tempo. Uma mocinha de rosto fino e boca constantemente aberta pediu para o motorista abrir a porta antes do ponto. O buzinaço dos carros e o engarrafamento natural da Av. Paulista não deixam contra-argumentos ao condutor. Saímos, mais da metade dos passageiros do ônibus. À minha frente uma mulher com terno marrom e tenis laranja, sem meia. Só percebi a sua idade quando mostrou a canela enrugada e cheia de pintas, ao cruzar as pernas.

Aquele movimento incessante na calçada. Sinal de pedestres vermelho. Uma mulher com um rosto bonito e pele feia olha para trás. Tem uma bunda magnífica. Uma chinesa alta e magra ao meu lado parece que nota meu olhar indiscreto e lança-se para frente, como que para barrar minha visão. Cruzo a paulista, seguindo sempre a bunda. Reparo um celular saltando pelo bolso daquela calça social preta apertada. Meus olhos abandonam o objetivo rebolante em frente a uma esfiharia. Um cheiro gorduroso e azedo, que tiram o apetite de qualquer um. Mais um cruzamento.

No outro lado da rua um homem limpa relógios falsificados com um espanador, como que para dar mais valor à mercadoria. Um japonês meio gordo vem em minha direção. Um bujãozinho. Continuo até a esquina. Duas empregadas domésticas me olham. Havaianas engorduradas. Um casalzinho jovem, branco e burguês para do meu lado. A sandália da loirinha riquinha se contrasta com a das domésticas. Atravesso a rua. Passo pela igreja, um menino gordo vem me pedir esmola. Não, está bem vestido. Só repara no cachorro de um senhor que está atrás de mim. Um cachorro peludo e preto, uma espécie de maltês negro e grande. Em frente à igreja uma senhora de olhar triste vende flores. Mais adiante, quase chegando no Extra um senhor, sempre o mesmo, continua reformando cadeiras. Ele martela a fita de plástico cruzada, que trançado faz o assento, imitando aqueles trançados de palha ou vime.

Cruzo o estacionamento do Extra. desço pelo lado, para pegar calçadas com menos movimento. A rua é pequena. Atravesso pelo meio dos carros parados. Na frente do edifício Cidade Vecchia, portões grossos e um lindo jardim, uma ratazana cruza a calçada na minha frente. Entra pela fresta de um desses tampões de concreto que compõe as calçadas de São Paulo. Estou mais próximo de casa. No fim da pequena rua congestionada viro à esquerda. Uma japonesa sorridente passa por mim. Subo até a Treze de Maio. Um menino em seus 16 anos, cabelo raspado, óculos e mochila nas costas espera. Olha para o trânsito como se estivesse esperando alguém.

Rua Papa Pio XI vazia. O mendigo que habita a entrada do consultório odontológico da esquina não está ali. Tem a cara do Seu Jorge. Desço até o apartamento. Aqui é o Chico do 102. O porteiro, com seu sotaque nordestino atende e abre o portãozinho. São 18h26 e as luzezinhas de natal, que enfeitam o teto da passagem na porta do edifício já estão acesas.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Prof Aziz

Aziz Ab'Sáber é um geógrafo. É o homem que melhor dividiu o Brasil em regiões. Ele está presente nos principais livros didáticos.
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Um depoimento compulsório

Risadas. Acho que só ouvi risadas sinceras depois da terceira semana. No começo eram respeitosas, estudadas. Perto do fim, a exatos três dias, penso que elas nos definem.

A minha primeira, lembro bem, foi para me apresentar. Veio acompanhada de um sorriso-cumprimento, enquanto me sentava para a entrevista inicial do Curso de Jornalismo. Saiu grave e desajeitada. A última foi ainda ontem, antes de sair da sala. Uma piadinha batida sobre o tema de nosso caderno: o aquecimento global.

As risadas têm lugar e hora para sair. Truncam o diálogo quando se adiantam. Os primeiros risos provocados pelo coordenador do curso, Chico Ornellas, não foram unânimes. Eram comuns períodos de silêncio depois de uma frase do Chico que ninguém entendia. Uma frase que hoje viria acompanhada de uma gargalhada geral.

Aos poucos nos afinamos. Os sorrisos medrosos das primeiras aulas de redação passaram a ganhar movimentos, dinâmica e harmonia. Tornaram-se uníssonos. Em algumas discussões filosóficas chegaram a gargalhadas reprovadoras. Nada que ultrapassasse a barreira do bom senso (tivemos uma palestra dedicada ao assunto).

Choros foram poucos. Nas aulas de Paco Sanchez, quando um perfil mais emotivo era lido. Foram choros honestos, repentinos e sorridentes. Ainda serão mais vezes, espero.

Nas viagens éramos sorrisos. Bocas abertas para retribuir os bons tratos e, claro, comer.

Não deixa de ser engraçado notar como as risadas, que no começo poderiam ser consideradas irônicas, se tornaram amigas. Na primeira semana nos demos rótulos. Um exercício de análise para mostrar a primeira impressão que deixávamos uns nos outros. Algo muito importante, segundo consta. Coube-me a alcunha de limitado, inseguro e inseguro. Nada melhor do que 31 rótulos para cada um dos notáveis egos de nossa turma.

É bom ver o extrato proveitoso disso tudo. Encarar o que ficou de bom, o que realmente importou nos três meses de trajetória. Principalmente da parte séria, que praticamente não aparece nesse texto, mas que contempla valores e conceitos fundamentais ao jornalista. Não houve um dia sequer em que não ri nesse curso. Não porque não levasse a sério, nem deixasse de temer o espectro do ranking que nos rondou durante meses. Mas sim porque fiz parte desse grupo de jovens jornalistas que superou alguns obstáculos juntos. Conseguimos, samba-enredo após samba-enredo (foram quatro de autoria de nosso trio de compositores, mais um axé) marcar com qualidade e descontração essa 18ª turma.

domingo, 25 de novembro de 2007

Esse moleque travesso

O título já era dele. Qualquer derrota por um gol de diferença daria a taça do Campeonato da Federação Paulista de Futebol para o Clube Atlético Juventus. A festa estava montada, cerca de três mil pessoas lotaram as arquibancadas do Estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari. A italianada da Mooca marcou presença. A torcida adversária do Linense não fez por menos, compareceu ao certame, acreditando na vitória gorda que lhes daria o título.

Depois de uma canção que rememorava a Revolução de 1932, pela Lei, por São Paulo e pelo Brasil, começou a partida. Embebidos de brio e glória esquadrão violeta não perdoou e meteu logo um golaço na gaveta do goleiro linense. O adversário chegou a empatar, mas a bandeirinha, isso mesmo, fiu fiu, uma bandeirinha acima da média para um campo de futebol anulou o gol. Graças a Deus! Mas o empate foi inevitável no primeiro tempo, o Linense ainda marcou, se não me engano de cabeça. A resposta do moleque travesso veio quase instantaneamente e resultou num pênalti, perdido pelo "craque" Jhonny, que parece o Vieri, segundo dizem. Engraçado é que a torcida o compara com o Vieri para denegri-lo, mais do que qualquer coisa.

A festa continuava enquanto a venda de canoli movimentava o corredor central da juve. No segundo tempo a torcida da casa ficou calada, e teve que sofrer mais. O Linense partiu pra cima e conseguiu o segundo gol. Aos quarenta e cinco do segundo tempo, quando o juizão já tinha anunciado os quatro minutos de acréscimo, o Linense conseguiu cavar um pênalti. E não desperdiçou. O goleirão do Juventus, Marcelo, se não me foge a memória, "bom com as mãos mas ruim com os pés" não conseguiu segurar o petardo. Conseguiu perder o título dentro de casa, desabafaram os torcedores. Pontualmente via-se pelo estádio alguns desacorçoados descendo para logo fugir dali. O lado linense do estádio explodiu em festa. É campeão!... É Campeão!...

Silêncio dos moquenses. Um último lance de ataque do moleque travesso. Bate e rebate na área e é gol. Gooool!... É do Juve! O título é nosso. Chuupa Linense! Oooo filha da puta! Esses e outros gritos surgiram numa virada histórica. É mais um título do Juventus, que esse ano já levou também o vice de natação e a musa do campeonato.

Hino do Juventus

Esse moleque travesso,
que tem nome e tradição,
merece o nosso respeito
É a força jovem da nação.

Que belo time,
Que belo esquadrão
Juventus amigo
do meu coração

Juventus, Juventus
eu estou aqui
Vamos torcer junto Juventus
Pra daqui nunca mais sair

mais fotos no meu flickr (link ao lado)

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Paraty no feriado

Parati vai se tornando Paraty à medida em que saímos de São Paulo. Conforme avançamos no caminho as placas vão admitindo a grafia original da cidade. As rodovias tornam-se mais estreitas e sinuosas. Quando entramos no estado do Rio de Janeiro, os olhos de gato somem e as faixas se tornam irregulares. Nos aproximamos do estado de natureza, hobbesiano e exuberante.

No domingo a entrada da cidade está tranquila. A cidade antiga se revela logo que chegamos. Algumas construções novas que imitam o estilo colonial já denunciam o que nos espera. Alguns traços de cidade pequena e arquitetura ordinária ainda persistem, é verdade. Ao longo da avenida principal vamos percebendo uma gradação, saindo da cidade pequena, fluminense, barata e contemporânea rumo ao passado.  Seguimos a avenida principal até encontrarmos com os caminhos de pedras irregulares. Aqueles que impedem os saltos na Flip.

Nossa casa está na Rua do Comércio, a principal. A casa é também a principal, a única com eira e beira de nosso bloco. Inicialmente foi armazém, depois reformada tornou-se pousada e agora abriga eventos. Quando entramos pela porta azul que tem uma pequena cruz no alto, percebemos onde estamos. A ante-sala escura e com uma parede que não chega até o teto não consegue esconder a grandeza da sala principal. Ao fundo, olhando reto em direção à entrada a grande mesa de jantar está bem iluminada, ladeada por uma grande janela. A escada principal esconde os lustres e ventiladores que estão junto à mesa. Uma coisa é certa, é tudo muito grande e belo.

Vários móveis de épocas antigas e pequenos objetos nunca mais usados estão em todos os lugares. Uma espécie de telégrafo, vários espelhos de todos os tamanhos, tudo incrivelmente limpo e inodoro. Minha idéia de antiguidade relacionada a cheiro de mofo mudou depois dessa experiência. Foram três dias e duas noites vivendo nesse paraíso. Eram várias casas, uma espécie de vilinha. Treze quartos, três cozinhas, sala de música e estar. Os quartos tinham a peculiaridade de terem separados o lavabo e o banheiro. Em nenhum lugar eles eram combinados. Talvez denunciassem uma época em que eram necessariamente separados.

Já conhecia Paraty, já tive a oportunidade de estar lá na Flip. O cansaço não me permitiu de mais explorações. A chuva não me permitiu maiores fotos. Eu me permiti um descanço. Cansei. Ainda guardo o estresse de São Paulo é difícil distender. É difícil parar de pensar nos detalhes insignificantes da vida, na grafia das palavras, na estrutura do texto. É certo que o que fica não são essas coisas. As contradições aos poucos desaparecem. O armazém é chamado de casa ou pousada. Os objetos que ficarem, as poucas e austeras coisas que eu deixar contarão histórias de outras pessoas. Tão deslocadas e preocupadas quanto estive lá em Paraty. Sequestradores de interpretações, de belas imagens e de filosofias.

Queria viver lá, como pescador e cuidador dessas casas. Como o Bitelo, o nosso amigo caseiro. Ou o Serginho, já subalterno do Bitelão. Queria fugir só. Só queria viver nessa ideação. Na praia do Sono pensei várias coisas. Não tive sono não. Desisti de morar em Paraty quando entrei no açougue do mercado. Um fedor completo mesclado a uma desorganização digna do Rio de Janeiro. Eram três balcões: frios, carniceria (eu uso o espanhol aqui porque casa com el olor) e padaria. Cada um com um rolinho de senhas de papel e uma fila que se formava atrás delas. Um bafo quente insuportável. Algo que me lembrou muito o lado ruim da cidade maravilhosa. A paciência, por sorte, sempre está em alta quando vou pra lá. Mas não se suporta isso por toda uma vida.

www.flickr.com.br/photos/paulojustus

domingo, 11 de novembro de 2007

São Paulo e a infância

Nas últimas semanas tenho experimentado uma constante de nostalgia. Uma saudade que me acompanha quando rememoro antigas canções gauchescas, lá de Guarapuava, ou quando lembro as catequeses de sábado à tarde. Tudo isso enquanto passo apressado pelos gigantes de concreto ancorados na Avenida Paulista. É uma sensação reconfortante. Sinto-me responsável por aquele meu antigo eu, a criança. Sinto que preciso mantê-lo vivo, com pequenos doces e distrações. Eu adorava as pequenas distrações.
 
Tinha o costume de observar por horas as formigas trabalhando. Nas aulas de ensino religioso de meu colégio adventista e também nas catequeses católicas a metáfora da formiga trabalhadora era sempre utilizada. Mais ou menos da mesma forma que aparecia naquela fábula da formiga e do grilo, que eu gosto muito. Sempre que podia eu carregava uma formiga comigo, de um lado para o outro. O principal itinerário era da casa da minha avó para a minha. Normalmente levava aquela pequenina formiga doméstica. Aguentava a coceira que sentia quando ela lutava para andar entre os finos pelos de meus braços.
 
Junto com os colegas do Curso de Jornalismo lembro-me também da infância televisionada. O lado bom de um sistema de comunicação que nos padroniza mais e mais. Uma cumplicidade de jingles e episódios de enlatados americanos que nos aproximam, 31 jovens de diversas partes do país. Não fosse a telinha, levaríamos mais tempo para descobrir e imaginar a infância alheia. Acho que todos temos uma constante necessidade de se identificar com o outro. Talvez a nostalgia venha daí.

domingo, 28 de outubro de 2007

Da importância da cultura à revisão textual

Paco gosta de transformar suas aulas numa experiência heurística. Para a turma brasileira do Curso de Jornalismo Intensivo, o método pareceu estranho. Ao fim de uma semana intensiva, no entanto, todos participavam. A descoberta fixa-se fortemente quando surge da boca de quem aprende . Pequenas frases tornaram-se grandes ensinamentos. Lições que, em nosso caso, foram marcadas pelo sotaque galego desse professor da Universidade de Navarra.

A seguir está um relatório que tive que fazer, novamente no dia 24 desse mês. Comentava um pouco dos conteúdos da aula de Paco.

No período da manhã de quarta-feira José Francisco (Paco) Sanchez retomou a palestra do dia anterior. Começou pelo conceito de cultura. Segundo Paco, as culturas se dividem pelo nível cultural que alcançam. Foi precisamente pelos resultados alcançados por determinadas culturas que ele comparou já em aulas anteriores a cultura judaico-cristã ocidental com outras.

Alguns focas ficaram chocados pela possibilidade de superioridade de uma cultura sobre a outra. As questões que surgiram na aula ficaram em torno do proceder jornalístico. Como o jornalista pode agir sem preconceitos se parte do princípio que sua cultura é superior às outras? Paco respondeu que a cultura ocidental nem sempre é superior, continua sendo débil em muitos casos. Mas quando a questão é Direitos Humanos, então ela é efetivamente mais evoluída. Como exemplos ele citou o respeito às mulheres, às demais religiões e às crianças.

Paco diz que a discussão sobre a cultura é importante porque o jornalista escreve sempre o capítulo três. Isso sem saber o que se passou nos capítulos um e dois e sem idéia do que será o quatro. Ou seja, o exercício do jornalismo exige uma formação sólida. Os jornalistas produzimos cultura constantemente.

O jornalista, para Paco, é como um médico. Precisa ter a capacidade de diagnóstico. Uma espécie de diagnóstico cultural que saiba dar às suas matérias o mesmo sentido que as coisas têm na realidade. Por isso é preciso ler muito. Segundo ele, no mínimo um metro de livros (deitados um sobre o outro) por ano. Esse é um dos itens da lista de proposições de Paco, que também contempla a lembrança constante de que as coisas são complexas.

Depois das discussões filosóficas e culturais, Paco apresentou a estrutura argumentativa. Introduziu os elementos básicos da argumentação e dividiu-a em dois tipos: persuasão e convencimento. Em seguida pediu que analisássemos dois editoriais e identificássemos que tipo cada um era, se persuasivo ou argumentativo.

Para mais Paco: www.pacosanchez.bitacoras.com
Recomendação do próprio Paco, ler em Capítulos de Libros os seguintes posts: La escritura como modo de vida; e La narración periodística.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um retrato

Um rosto anguloso emoldurado por uma barba aparada. Um sujeito boa praça, vestido para o ofício de jornalista: uma camisa de mangas dobradas, uma calça jeans e sapatos de couro. Meio formal, meio desleixado. Porque não posso revelar seu nome verdadeiro, vou chamá-lo de Adão. O rebatismo não é só pelo pomo-de-adão avantajado que tem esse meu amigo, mas também pelo som. O som grave e forte da palavra Adão que me lembra sua voz. Uma voz de destaque.
Adão lembra também algumas características superlativas desse personagem. O costume que tem de, por exemplo, colocar no aumentativo os nomes de alguns colegas.  
— E aí Chicão, beleza? — Assim me cumprimenta toda a manhã. Sinto-me orgulhoso, confesso. Do alto de meus 1,65 metro ser chamado de Chicão é reconfortante, e não deixa de ser uma boa piada.
Adão é um fanfarrão. Ele é assim positivo. O tipo de sujeito que emana o lado bom da vida. Encara com um sorriso as situações mais adversas. Lembro-me muito bem de certa madrugada, quando passeávamos perdidos em São Paulo. Acreditávamos ser possível voltar a pé para casa, cruzar três ou quatro bairros ou coisa que o valha, já um tanto mareados pela cerveja. Lembrei de uma frase predileta de meu pai. "Dois cagões vão longe". Persistimos no erro até vermos o preço inflado do cardápio de um restaurante, que ficava onde acreditávamos ser o meio do caminho: R$ 27,00 por um hambúrguer à moda da casa. Um absurdo, o suficiente para irmos de táxi e ainda comermos mais perto de casa.
— Acho que devemos pegar um táxi — disse ele.
— É, acho que a gente não chega em casa a pé.
Adão não receou até que eu receasse. É, sobretudo, um companheiro.
Assim o conheci companheiro e fanfarrão. Assim o tinha resolvido. A convivência no Curso de Jornalismo Intensivo do Estadão é que o transformou no jornalista. Pouco a pouco olhei para além daquele personagem das festas e noitadas.
Vi um jornalista dedicado.
Reparei que aquelas mangas dobradas estavam mais para arregaçadas. E que o sapato poderia até estar sujo de lama ou do que quer que fosse preciso para que a pauta fosse cumprida. Percebi um olhar sério intermitente entre os sorrisos, de alguém prestes a fazer algo grande. Finalmente li seus textos. Ali encontrei o Adão desses intervalos sérios, o caçador de personagens. Textos bem medidos. Palavras graves e fortes como a sua voz.U

Apenas um porteiro

No domingo, por volta das 11 horas Acácio notou a correria. Os moradores da região do Parque Estadual do Juquerí procuravam os guardas ambientais para reportar um foco de incêndio. Logo em seguida outras guardas, que monitoravam por motos o parque chegam também com más notícias. Os bombeiros chegam duas horas depois. Deixam suas viaturas e emprestam as três pickups da Secretaria do Meio Ambiente para o acesso às chamas. O sol quente e o tempo seco pioram a situação. O controle é impossível. Por volta das 17 horas o primeiro helicóptero águia chega ao local. Mais tarde outra unidade auxilia no combate e identificação dos focos, vindo diretamente do autódromo de Interlagos.
 
São três focos de incêndio, me diz Acácio, da portaria do parque. São quase 19 horas e ele tenta explicar o caos. Tem muita fumaça, muita correria. Ele é só um porteiro, só indo lá mesmo para ver como está a situação. Não dá para falar por telefone telefone. Por esse horário começa uma ventania, que os bombeiros diriam depois, auxiliou ainda mais para espalhar as chamas. O vento, no entanto, precedeu a chuva, que deve ter apagado o incêndio.
 
Nascido em Franco da Rocha, Acácio nunca se imaginou trabalhando no parque. Tem orgulho do trabalho. Ele suspeita de incêndio criminoso. "Aqui tem muita gente com problemas com o parque, desde que ele virou área de preservação ambiental". Desde que se tornou APA, o parque proíbe a construção e limita a entrada de visitantes. "Mas o pessoal dá a volta e entra por outros cantos, foi muita coincidência três focos ao mesmo tempo", diz. Pede para não falar em seu nome, para não por sua opinião no jornal. Acácio é um nome fictício usado para esta matéria. "Não sou da secretaria, sou de uma empresa terceirizada, não posso dar opinião".
 
Por fim, ele desliga, lá perto das 19h20. "Agora você já me segurou para depois do expediente, estão me chamando aqui", ele diz como se estivesse prestes a bater o cartão enquanto parque todo pegasse fogo. Às 8 horas os bombeiros ainda não saíram do parque. Às nove começa a chuva e o descanso desses domingueiros. Acácio, quem sabe, já estivesse em casa a essa hora, imaginando as cinzas do dia seguinte. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Isso também é São Paulo -- APA do Capivari

Iraci Conceição da Silva e João Ferreira de Morais enfrentam a pé o sol e a poeira das 13 horas do domingo. Voltam para casa. Ela, 39 anos, leva no colo o pequeno Lucas Ferreira da Silva de Morais, de oito meses, que dorme embalado pelos passos pesados. Saíram cedo de casa para enfrentar quase duas horas de viagem até o bairro da Barragem – ensaio de civilização mais próximo à antiga vila ferroviária da estação Evangelista de Souza, onde moram.

Localizada no extremo sul da capital, a estação já teve escola e mais de 200 moradores. Nos anos 70, quando havia movimento de passageiros, seus
habitantes viviam de comércio e serviços. O acesso à cidade era mais fácil. A substituição do transporte ferroviário pelo rodoviário esvaziou gradativamente o vilarejo. Em 1997 o transporte de passageiros encerrou-se de vez. Já era capenga e dependia das condições da ferrovia, que raramente eram favoráveis.

Daquela época só resta hoje a cantina, que foi convertida em bar. Quinze anos atrás, quando Antônio Cezar Leandoro se instalou na estação, o movimento de passageiros era pequeno, mas suficiente manter uma circulação de cerca de 200 pessoas por dia em seu comércio. Hoje ele atende 40 pessoas num dia de bastante movimento, contando com os trabalhadores da ferrovia e habitantes da Área de Preservação Ambiental (APA) do Capivari-Monos, que engloba a estação. São guardas municipais, índios, lavradores e campistas.

Iraci passa por destroços de trilhos e de trens no caminho de casa. Quando chega onde ficam os truqueiros, o clima já virou. Da poeira seca não resta nada. Agora ela respira a neblina úmida da serra do mar. Tenta proteger o peito nu de Lucas, que ainda dorme. "É um sofrimento muito grande, ter que caminhar duas horas para conseguir remédio". Ela fala no meio de uma encruzilhada escondida pelas nuvens. Mal dá para ver a subida íngreme que leva à casa dela. Os truqueiros conversam alto sentados numa pequena roda. Dá mesmo para imaginar que jogam truco. "Truqueiro é quem troca as pastilhas de freio do trem, antes dele descer a serra", explica Jão Ferreira, 57 anos, antes de acompanhar sua esposa para casa.

A conversa e o ritmo de descanso dos trabalhadores é interrompida pela chegada de uma composição. Agora todos vão aos seus postos. As pastilhas novas já estão distribuídas ao longo do trilho para facilitar a troca. No bar do Toninho uma leva de trabalhadores chega. Eles acabaram de "largar" o serviço. Pedro Ribeiro, "só Pedro Ribeiro", é um deles. O menino de 19 anos trabalha há um ano como ajudante geral de linha, pela empreiteira Santa Rosa, contratada da América Latia Logística para a manutenção da linha. Ele mora em Barragem, e vem todo dia para o trabalho duro, mas não reclama. Os R$ 480,00 que ganha somados às horas extras dos domingos lhe são muito bem-vindos.

Rodrigo Bruno da Silva Santana, 21 anos, compra duas garrafas de cerveja no bar da estação. Ele trabalha há quatro anos na manutenção da ferrovia. É genro de Toninho, mora com Fabíola Aparecida Dumont, 21 anos. Ela reclama da monotonia que enfrenta no local. Passa os dias cuidando da casinha, que um dia já foi regularmente cedida a seu marido, pela administradora da ferrovia. "Nós pagávamos pouquinho, só para constar no papel", diz Rodrigo.

A América Latina Logística (ALL), concessionária que opera a ferrovia, devolveu as residências à Rede Ferroviária Federal (RFFSA) em 1999. As casas, bem como várias estruturas do pátio da estação Evangelista de Souza, foram vítimas de vandalismo. Aos poucos a mata atlântica da APA vai engolindo as construções depredadas. Das dez que existiam à beira da linha do trem, hoje só podem ser identificadas seis. Quatro delas são habitadas. Rodrigo mora na casa mais próxima à estação. O irmão dele, Luis Fabiano da Silva Santana, e sua mãe, A
na Maria da Silva Santana, 57 anos, moram nas casas mais distantes. "Eu vivo aqui há oito anos, tive que reformar e pintar a casa, que estava pichada", diz ela.

A estação está mais conservada. Foi devolvida para a Rede Ferroviária em 2002. As paredes estão pintadas e não há vidros quebrados. O bar em que Toninho trabalha e vive só foi repassado para o governo em 2004. A ALL mantém hoje uma estrutura mínima de operação no local: três guaritas, duas caixas d'água, duas casas de força, o posto de truqueiros, a casa de comando, um tanque e "quartos diversos" com operacional.

Perto das casas, beirando os trilhos de trem, há um pequeno campo de futebol, onde ocorrem os amistosos dos ferroviários e crianças da região. Jean Leandoro já disputou ali várias partidas. Ele gosta de morar em Evangelista de Souza, mas reconhece que se quiser conhecer o mundo, vai ter de se mudar. "Eu queria fazer um curso de informática. Se eu quiser fazer uma faculdade, vou ter que sair daqui", diz ele. A escola em que Jean estuda fica no bairro de Barragem. Em dia de aula uma van o leva para estudar.

A dificuldade das crianças desanima o casal que pretende ter um filho. Rodrigo e Fabíola já pensaram no assunto. Eles conhecem o exemplo de Idalci e João – as longas caminhadas até a Barragem. "Aqui é bom para homem, mas para mulher e criança não dá", diz Fabíola. Ela enfrenta o tédio do dia-a-dia conversando com a sogra ou cuidando da casa. Rodrigo reconhece o marasmo da esposa, mas não pretende sair. Nos quatro anos que está na casinha ferroviária nunca lhe faltou trabalho.

Para as eventuais emergências existe o posto da Guarda Municipal Ambiental, instalado em um dos escritórios da estação. Ali há sempre três guardas de prontidão, 24h por dia. "Quando alguém aqui passa mal, ou tem acidente, a guarda leva para Parelheiros", diz Rodrigo. O posto foi instalado na região quando a APA foi criada, em 2001. Há dois anos, uma nova unidade foi construída na APA, mais próxima a Parelheiros. Para lá foi transferida a sede. "Diminuímos o efetivo, mas continuamos dando plantão", explica o inspetor chefe regional da Guarda, Calos Bento da Silva.

Desde que a Guarda Municipal Ambiental foi para a região, o vandalismo diminui. "O local era ponto de encontro para usuários de drogas e local para a desova de corpos", diz Bento. Há tempos a violência não é uma questão para os moradores do local. Existe sim uma ameaça constante de acidentes ferroviários. No início do ano uma campista morreu depois de cair nos trilhos quando pegava "carona" pendurada no trem de carga.

Outro medo tem a ver com a expulsão dos moradores. Com exceção de Toninho, que diz pagar aluguel ainda hoje para a Rede Ferroviária, os demais habitantes da vila ocupam irregularmente as casas. Houve rumores de que seriam retirados para abrir caminho às obras do Rodoanel. As obras, segundo a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente, passam por outra APA, a do Bororé-Colônia.

A secretaria tem um plano para o incentivo do turismo na Estação Evangelista de Souza. Pelo projeto, as construções em volta da estação seriam reformadas e um trem turístico – uma Maria Fumaça reformada – voltaria a circular no trecho, fazendo um percurso de 11 km, que ligaria o bairro de Colônia Paulista, no distrito de Parelheiros ao bairro Evangelista de Souza. A administração do passeio ficaria sob o encargo da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF).

A situação da Rede Ferroviária Federal, no entanto, não traz alento aos moradores. Extinta em 16 de maio, a rede hoje mantém uma estrutura fantasma, com seus funcionários repassados para a Empresa de Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. (Valec), também estatal.

Enquanto espera o movimento melhorar, Toninho do bar procura aproveitar a ampla paisagem da APA e relembrar o tempo em que trabalhava na cidade. Nos descampados dá suas tacadas de golf. Os oito tacos e nove bolas, conquistados na época em que trabalhava como caddy, são troféus na parede de seu minúsculo bar, logo acima das caixas de cerveja empilhadas e abaixo de um arco e flecha provavelmente doado pelos índios guaranis da região.

Mais fotos em www.flickr.com/photos/paulojustus

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Matérias anteriores

As matérias dos posts anteriores foram feitas para o Curso de Jornalismo Intensivo do Estado de São Paulo. A primeira, sobre os idosos é de um exercício, a pauta do centro, descrito num outro post aqui neste blog. A segunda é uma pauta internacional, sobre o Peru, que todos nós alunos recebemos. Tivemos alguns bons textos na turma e como sempre me vi em apuros no fechamento. Há alguma espécie de pressão, de desconfiança e uso excessivo do manual de minha parte que me irrita muito. Isso leva o texto ao formato quadrado, árido, que tanto critico.

Com relação à produção, a matéria dos idosos foi meu primeiro atraso. Também foi uma de minhas pautas mais confusas. O problema começou na indefinição da própria pauta. Parti para um evento de idosos sem uma idéia fixa do que iria fazer. Percebi que o problema ia mudando conforme eu conversava com os idosos organizados, aliás uma categoria em franca ascensão. Visitei a Vila dos Idosos no domingo, numa confraternização entre os velhinhos moradores. Percebi lá vários conflitos latentes, frutos da falta de critério do governo municipal em classificar os contemplados com o programa. Muita gente lá está por outras contas que não a da idade e outros tantos estão por apadrinhamento político.

Claro está que os idosos organizados também têm suas preferências políticas. Ligados aos movimentos de moradia, dos Sem Teto, muitos deles apresentam um discurso próximo ao radicalismo. Radicalismo no entanto amenizado pela experiência da idade -- talvez por isso eles tenham conseguido a vila dos idosos.

Já a pauta do Peru foi mais tranqüila. A idéia surgiu quando vi o release do livro publicado no site www.casamerica.es. Consegui, com algumas ajudas, o e-mail do escritor e posteriormente seu telefone. Conversei com ele numa longa e, depois notei, pouco produtiva conversa. Alguns detalhes importantes para o decorrer da história, como breves anedotas e datas exatas deixaram o texto um tanto vazio e sem autoridade, ao meu ver. Faltou a mão na entrevista. Para não ficar sem desculpas prefiro deixar claro meu impressionamento com a primeira ligação estrangeira efetivada por meus próprios dedos. Um portunhol estabanado também contribuiu um tanto para o insucesso e a insegurança. Tendo em vista essas mea culpi (haha, inventando um plural aqui), até que o material não ficou tão ruim. Enfim, vamos em frente!

Escritor peruano escreve primeira obra sobre a vida de Abimael Guzmán

O novo livro-reportagem do jornalista peruano Santiago Roncagliolo rompe um silêncio de 15 anos desde a prisão de Abimael Guzmán, um dos mais sanguinolentos terroristas da América Latina. La Cuarta Espada (A Quarta Espada, ainda sem título ainda para o português), retrata a vida do líder do grupo guerrilheiro peruano Sendero Luminoso. Lançado nos países hispânicos no fim de setembro, o livro deve chegar ao Brasil no ano que vem.

Considerado por seus seguidores como a quarta espada do comunismo internacional — depois de Lênin, Stalin e Mao Tse Tung — Guzmán foi o responsável por 40 mil das 70 mil mortes no confronto entre o Sendero Luminoso e o governo do Peru nos anos 80 e 90. Os métodos brutais de luta da guerrilha, segundo Roncagliolo, lançaram as bases de uma ditadura nos anos posteriores à captura de Guzmán, realizada em 1992. "Os militares defendiam suas monstruosidades em nome de um governo civil legitimado de alguma maneira pelo terrorismo do Sendero Luminoso".

Desde sua prisão, Guzmán não dá entrevistas. A base da marinha de El Callao em que está detido junto com outros seis prisioneiros proíbe o contato com jornalistas. Foi com essa dificuldade que Roncagliolo desembarcou no Peru três anos atrás, com a missão de fazer uma reportagem para o diário espanhol El País, no qual trabalha. Esse foi o estopim para o livro. A idéia de se fazer um livro-reportagem já estava em gestação quando ele produziu seu romance político Abril Vermelho. "Durante a pesquisa para aquele livro encontrei histórias muito mais interessantes na realidade do que na ficção. Só me faltava um tema", diz.

Impossibilitado do contato direto com Guzmán, Roncagliolo procurou os familiares do terrorista, carcereiros, policiais, agentes do serviço de inteligência, professores que lecionaram com ele e antigos generais do Sendero Luminoso espalhados pelo mundo. "Tratei de buscar todos que tiveram contato pessoal com Abimael. Existem pessoas do Sendero Luminoso na Suécia e Bélgica, além dos que estão nas prisões", afirma. Trata-se de um rol pequeno de pessoas, já que nos últimos 30 anos, Guzmán esteve durante 15 anos preso e nos outros 15 anos vivendo como clandestino. A partir desses pontos de vista ele foi reconstruindo Guzmán. "Esse é o primeiro livro que se faz com informações dos terroristas, sobre eles falando como eram eles enquanto se dedicavam à luta armada", diz Santiago. A obra procura explicar os motivos por que esses terroristas entraram na guerrilha e como eles se relacionavam entre si dentro do Sendero Luminoso.

La Cuarta Espada é o primeiro livro-reportagem de Santiago Roncagliolo. "É a primeira vez que eu trabalho com fotografia dos personagens. Lidar com uma realidade tão sangrenta tem sido uma experiência muito enriquecedora", diz.  Segundo o autor, são justamente os livros reportagens e crônicas jornalísticas os elementos de renovação da literatura peruana, que normalmente estaria dividida em dois séqüitos. O primeiro ligado à direita de Mario Vargas Llosa faria parte dos ideários urbanos e liberais de Lima. O segundo tem relação com o menos notório escritor José Maria Arguedas, socialista rural da esquerda que se suicidou em 1969, sem conhecer o Sendero Luminoso.
Santiago, 32 anos, não se classifica em nenhum dos lados, apesar de seus pais terem origem na esquerda peruana. Quando criança ele viveu como exilado no México, e só retornou ao Peru em meados dos anos 80. Vive há sete anos na Espanha e se compreende como alguém que acredita num meio termo — na comunhão da igualdade desejada pela esquerda com a manutenção da liberdade pregada pela direita. A distância e a perspectiva de imigrante lhe deram mais elementos para trabalhar como escritor e se compreender como latino-americano.

Um burocrata da morte
O que torna Abimael Guzmán interessante é como o terrorista conseguiu reunir um exército em torno de sua causa sem contar com infra-estrutura, diz Santiago Roncagliolo, escritor do livro-reportagem sobre o líder do Sendero Luminoso, La Cuarta Espada. Guzmán comandava as mortes de dentro de seu escritório, sem contar com apoio de outros países, recursos ou muitas armas. "Para mim foi interessante entrar na cabeça do monstro, do assassino. Tentar pensar como ele chega a ser o que é. Ver como foi seu desenvolvimento ideológico e militar", diz.

Santiago o considera um homem diferente de Che Guevara ou do modelo de revolucionário latino americano habitual, porque não estava no campo de batalha e não era alguém que movia as massas. "Ele ficava num escritório, recebia informes e emitia ordens e planejava campanhas. Era quase que um burocrata da morte. Articulava muito bem a violência e fazia tudo de dentro de seu escritório", diz o autor.

Uma das dificuldades de se escrever o livro foi o posicionamento ideológico complexo do professor universitário que vai aprender guerrilha na China de Mao Tse Tung. "Abimael Guzmán considera a si mesmo e seus seguidores como moralmente superiores. Isso o diferencia de uma pessoa como Vladmirio Montesinos, que só queria mais poder e mais dinheiro", diz Santiago.

Cabeças brancas pedem moradia no Centro

Entre as cabeças brancas, cantigas e palavras de ordem. Na segunda-feira, idosos de várias partes da capital deixaram os Centros de Convivência e as quadras de bocha para lutar por um bem mais substantivo, a moradia. Os insurretos se reuniram às 9 horas em frente à Catedral da Sé, de onde partiram para audiências na Prefeitura Municipal e no Ministério Público.

O protesto foi conduzido por membros do Grande Conselho Municipal do Idoso, do Sindicato dos Bancários e do Grupo de Articulação da Moradia do Idoso na Capital (Garmic). Os manifestantes receberam apoio de outros mais jovens, da Frente de Luta por Moradia (FLM). Estes se concentravam para o manifesto alusivo ao Dia Mundial dos Sem Teto, comemorado junto com o Dia Internacional do Idoso, em 1º de outubro.

Segundo a conselheira municipal do idoso, Maria Eliete de Souza, de 65 anos, a coincidência das datas se adequou às bandeiras dos idosos da região central. "O principal problema do Centro é a moradia", diz ela. A coordenadora do Garmic e também conselheira do idoso, Olga Leõn Quirioga, de 71 anos, confirma a afirmação da colega e acrescenta: "com um bom lugar para morar, a saúde e o lazer vêm como conseqüência".

A multidão grisalha é composta de pequenos grupos uniformizados, cada qual com roupa e bandeira indicando a procedência. O pessoal de camiseta amarela e bandeira verde, por exemplo, representa a Zona Leste, enquanto a turma de camiseta e bandeira branca é do Centro. Idália dos Santos Rodrigues, de 66 anos, participou da passeata com uma bandeira branca na mão, mas sem a camiseta. O descompasso do uniforme talvez represente a ambigüidade de sua luta. Ela quer uma moradia no Centro, mas vive de aluguel em Guarulhos.

Lá ela consegue sobreviver com os R$ 180,00 que lhe sobram da aposentadoria. Os outros R$ 200,00 vão para o pagamento de uma dívida que contraiu dois anos antes. Ela fez o empréstimo, que só será quitado em 2009, para pagar o aluguel do filho. Para complementar a renda, Idáliar presta serviço de diarista duas vezes por mês numa "casa de família", no bairro de Santana. São R$ 30,00 pelo dia de trabalho. "É muito pouco, tudo que tenho é doado", diz, mostrando as roupas e ao sapato gasto.

Nem por isso ela deixa de vir religiosamente às reuniões mensais do Garmic, na Câmara Municipal, toda 3ª terça-feira do mês. Para ela o esforço vale a pena. "Vivi minha vida inteira no Centro, aqui cresci, casei e criei meus filhos. Queria muito voltar para cá", fala. 

Foi o Centro que a família dela escolheu para morar quando emigrou de Termedal dos Fernandes, na Bahia, para São Paulo, há 52 anos. Ao todo, entre as tragédias da morte prematura do marido e da filha mais velha, essa última ocorrida dois anos atrás, Idália viveu 40 anos em cortiços no Centro ou próximos à região central. O último foi na Ponte Pequena, região do Parí, onde morava com um neto e seu filho mais novo. Quando o neto saiu de casa, ela resolveu se mudar. "Meu filho não ajudava nas contas, então preferi morar sozinha".

Idália diz estar cadastrada há 40 anos na Cohab, à espera de uma moradia. Há um ano está no Garmic. Integra hoje o grupo de 1.525 pessoas registradas pelo grupo nos programas municipais e estaduais de habitação. Do total cadastrado, 55% é da região central, de onde surgiu o movimento de moradia para o idoso. "O nome inicial do grupo, inclusive era de Articulação para a Moradia do Idoso do Centro, e não da Capital" explica Olga.

Apesar da falta de moradia, o Centro ainda é o lugar em que o idoso consegue sobreviver com mais facilidade. "Aqui o idoso carente consegue pedir esmola, alimento e viver nos albergues, cortiços ou ocupações. Nos bairros ou na favela isso é mais difícil", diz Olga. A coordenadora calcula que haja 7 mil idosos sem teto. "Mais da metade deles vive nas ruas por opção, porque gostam mais de estarem sozinhos do que morar com a família", diz.

Hoje o artigo 37 do Estatuto do Idoso, garante o direito à moradia. O artigo 38 garante a prioridade na aquisição de imóvel e dá a cota de 3% das unidades residenciais para atendimento ao idoso. "Essa cota deve ser respeitada também nos projetos habitacionais de relocação de famílias ou reforma de prédios", ressalta Olga.

Além das cotas, o conceito de moradias exclusivas para o idoso é algo que começa a se concretizar. Inaugurada em 19 de agosto, a Vila dos Idosos, no Parí, foi o primeiro e até agora único empreendimento habitacional destinado a um grupo social específico em São Paulo. Viabilizado com verbas da Cohab e da Caixa Econômica Federal, o conjunto possui 145 unidades e é um primeiro sinal de mudanças na questão da moradia para idosos. "Achamos que a Vila foi uma conquista, mas ainda há falhas, principalmente nos critérios para a seleção dos contemplados", fala Olga.

Ela lembra que ao contrário do que todos pensam, o idoso prefere protestar a ficar no Centro de Convivência. Segundo ela, estiveram presentes no Dia dos Cabeças Brancas, cerca de 1,2 mil idosos. Na quinta-feira, um evento da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) voltado a lazer e serviços de saúde reuniu 3 mil idosos, segundo a própria secretaria.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Um relatório árido

Uma das atividades do Curso Estado de Jornalismo é fazer um relatório, no dia correspondente ao seu seu número foca. No meu caso, riam, foi dia 24. Posto o produto formal e não muito elaborado de meu trabalho:
 
RELATÓRIO FOCA24

Na manhã desta segunda-feira, a 18ª turma do Curso de Jornalismo Intensivo se reuniu na escadaria da Catedral da Sé. Às 8h30 boa parte da turma já se encontrava lá, faltando apenas dois ou três alunos, que chegaram dentro dos quinze minutos de atraso tolerados pelo professor Luiz Carlos Ramos. Não houve falta.

Luiz Carlos entregou as análises dos textos produzidos na aula anterior. Todos, segundo ele, variaram entre bom e muito bom. Depois de entregues as matérias, ele descreveu a proposta do dia. Os focas deveriam fazer uma matéria sobre o centro de São Paulo, "a verdadeira São Paulo que não a da Avenida Paulista".

Em seguida o professor levou o grupo por um passeio pelo Centro. O roteiro incluiu a Praça da Sé, Pátio do Colégio, Bovespa e Edifício Martinelli até a esquina da Avenida Ipiranga com a Avenida São João. Em frente à Secretaria de Justiça a turma encontrou uma manifestação do MST. A partir daí Luiz Carlos deixou livre para quem quisesse já cobrir a movimentação ou buscar outras pautas.

A maioria seguiu o professor pela Avenida São João, até a Avenida Ipiranga quando ele se despediu e seguiu seu rumo. Eram cerca de 10h30 e começou a chover. A partir daí houve uma dispersão dos focas em pequenos grupos.

Navegar impreciso

Dia 22 de setembro é dia do Rio Tietê. O rio que há 60 anos abastecia a cidade de São Paulo está morto. Suas margens foram canalizadas e asfaltadas. Tornaram-se Marginais. O esgoto da megalópole hoje corre em seu leito. É levado por dezenas de outros córregos também sepultos, imperceptíveis não fossem as freqüentes enchentes da cidade.

Em comemoração ao dia do rio uma empresa, organizada pelo Instituto Navega São Paulo, pretende levar um grupo de jornalistas e ambientalistas por um pequeno passeio pelo rio. O barco branco contrasta-se com os excrementos pretos que dão o tom da água do Tietê. Imponente, com três andares de altura, a embarcação dá a distância necessária para tornar o passeio menos impactante.

No primeiro andar, uma sala climatizada, janelas fechadas com os toldos brancos e uma apresentação e PowerPoint estão prontas. No segundo piso, um pequeno coquetel recepciona os visitantes. Ali o calor já se faz presente e as janelas estão descobertas.

É dali que se pode ver o homem que toma banho e lava suas roupas num dos dutos que abastece o rio. No concreto, ao sol, estão estendidas duas camisetas pretas, uma calça jeans, um par de meias e tênis pretos. Ao lado estão também um isqueiro, um xampu, um barbeador e um sabonete. O homem de bermuda se utiliza de um balde verde para se enxaguar.

Enquanto no barco os presentes no evento comem uma banana, um sanduíche natural devidamente embalado, ou vêem a gradação da água do rio Tietê — da nascente límpida, passando pelo negro trecho paulistano, até a foz onde torna a ficar translúcida —, o banhista se esgueira pelo túnel. Aperta-se contra a manilha e tira o calção. Nu ele olha para o barco, mas não interrompe o enxágüe.

No terceiro andar, que é um terraço, estão os cinegrafistas, fotógrafos e políticos. A vereadora Soninha também. Veio de bicicleta, politicamente correta no dia mundial sem carro — o capacete pendurado no pescoço não deixa dúvidas disso. Junto com ela cerca de quarenta jornalistas pegaram o ônibus na frente da UniSantana, enfrentaram o trânsito das marginais e foram até o barco, que estava a 600 metros de distância.

Do "terraço" se escuta o trânsito das marginais e se sente o sol na nuca. O vento interrompe o cheiro do rio. Fedor que lá embaixo, na hora do embarque, embrulha o estômago dos visitantes. Talvez seja por isso que a maioria deles esteja nesse local, não por acaso acompanhados dos fotógrafos e cinegrafistas.

Os grandes motores da embarcação, cujos barulhos lembram os de um ferryboat, começam a funcionar e abafam um pouco a concorrência de seus irmãos menores que trafegam pelas marginais. Os organizadores do INS convidam todos a descer e ouvir uma palestra sobre a empresa. Lá João Mogi (peguei o nome de ouvido), um japonês presidente do INS e de uma empresa contratada para o aprofundamento da calha do rio Tietê, conta como pretende ainda ver o rio revitalizado e apto ao transporte hidroviário. Antes, o "mestre de cerimônias" integrante do INS passa algumas instruções, entre elas a de que "em hipótese alguma a água [do rio] pode entrar em contato com as pessoas".

Com as janelas fechadas começa o passeio. A palestra de Mogi não dura muito. A curiosidade de se olhar a água que em volta do barco e as outras embarcações (canoas, botes e caiaques) que também participam do dia comemorativo dispersa os palestristas. Nem mesmo o ar condicionado segura os visitantes.  Sozinho, Mogi segue o fluxo de gente. A maioria sobe ao terraço, onde é possível aproveitar a vista, ser visto, fugir do cheiro e curtir a viagem.

O trajeto é pequeno e ninguém é tolo o suficiente para querer algum dia fazê-lo de novo. O barco sai da altura da ponte das Bandeiras, passa por baixo da via e segue até a altura do Anhembi, onde tenta fazer a volta. Tenta mais de uma vez, porque na primeira quase vira a canoa movida por cinco ambientalistas mais propensos a aventuras.

Eles são da turma que remou e que não quis se cobrir com máscaras de gás, capas de chuva e botas de borracha. Esses são os que estão nos botes infláveis. São cinco botes com cinco pessoas, quatro remando e um fotografando ou filmando. Esses estão mais protegidos.

Em terra, o grupo que acompanha aplaude, fotografa e filma, da ponte e das margens do rio. Margens que acumulam uma pequena caatinga que se forma entre o concreto e a água. Mato, pó e lixo.

Tudo muito diferente da escadinha montada para o acesso ao barco. Ela, como o barco, também é branca. Também foi colocada ali às pressas — a cal escorrida pelo concreto denuncia isso. O incômodo de um dos anfitriões, o banhista, também dá indícios de que a visita foi inoportuna e surpresa.

Findo o passeio, a organização avisa aos jornalistas que haverá mais um passeio, igual ao anterior antes da volta. Ressaltam que o ônibus ainda vai demorar outra meia hora antes de conseguir chegar ao local. Note-se aqui que o ônibus com o qual esse pessoal chegou ao barco foi improvisado, já que o original ficara preso no trânsito, em pleno dia mundial sem carro. Mesmo assim a maioria sai.

O cheiro é insuportável, dá nó no estômago. O vapor de merda que se acumula no nariz, impregna-se nas roupas e que escorre pelo suor é demais. Quando o grupo de canoístas quase virou, quem estava ali na beira do primeiro andar pode ver como eles habilmente remavam entre os dejetos, entre os pedaços de fezes que formam a superfície do rio. Volta e meia, pelo revolver da água causado pelos grandes motores, um ou outro lixo mais elaborado, pneus inclusive, apareciam à superfície.

Por isso a maioria deixa o barco. Esperam os canoístas subirem, pacientemente, para não correrem o risco de entrar em contato com a água. Só à beira da Marginal é que percebem o porquê do ônibus: os carros. É simplesmente impossível atravessar a marginal a pé. O fluxo intermitente justifica todas aquelas barraquinhas, trilhos e fogueiras nas faixas de terra que separam as pistas: as pessoas simplesmente não conseguem atravessar a pista entre 6h e 20h.

No alto da ponte um ex-sindicalista e neo-ambientalista propaga alguns gritos de ordem híbridos. São brados ecológicos na rima e entonação metalúrgica. Do alto de seu caminhão de som reclama dos motoristas que não deixaram seus carros em casa para sofrerem como simples pedestres. Reclama das guerras e dos líderes. "PAZ e AMOR!", anuncia um colega seu de outro caminhão de som ainda maior. No ritmo do Axé e com a faixa "Mega Feirão de Veículos".

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A grande discussão

Dora Incontri é doutora em Educação. E é sobre Educação (com o Ezão) que nos debruçamos em nossa primeira aula de filosofia. Algumas generalizações são necessárias, adverte ela logo de começo e parte para a Grécia, com a convicção maiêutica de uma socrática assídua. Explico: maiêutica era o método que Sócrates utilizava para filosofar e ensinar sua filosofia. Com ela o filósofo extraía conhecimento das pessoas mais ordinárias daqueles tempos, como escravos e mulheres.
 
No decorrer da explanação, uma intromissão intermitente insistia em pensar a maioria dos homens como ineptos. O mesmo corte no raciocínio nos dava a entender que, a não ser que nos tornássemos Einstens (vá lá, que nós, pequenos jornalistas, não nos tornássemos Cacos Barcelos ou outros exemplos mais elaborados de profissinais), cairíamos na perigosa média medíocre -- uma tal "caixinha do faz tudo", que poderei discorrer depois.
 
Felizmente, algumas caras viradas e conversas paralelas depois, não chegamos a conclusão alguma. Atingi o meu objetivo, disse nossa professora triunfante. Filosofia é isso, discussão, voz alta e caras feias (blasé). Tá certo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Uma foca dos anos 50

Ontem tivemos a oportunidade de conhecer Cecília Thompson, a nona jornalista do Estadão, com 52 anos de carreira jornalística e uma jovialidade de dar inveja a muitas meninas de 20 anos que andam por aí. Atualmente ela é da ouvidoria do jornal. Seu trabalho é importante para a rotina do jornal. Recebe cerca de 200 e-mails por dia e, pasmem, resopnde a todos, junto com uma auxiliar. Faz isso buscando a resposta às reivindicações da população junto com as autoridades ou empresas responsáveis. Segundo ela, 90% das questões são resolvidas.
 
Ela contou preciosidades sobre a época de chumbo e sobre antes. "Na primeira vez que entrei na redação ouvia aquele barulho de centenas de máquinas de escrever e aquele cheiro de chumbo, da linotipo. Parecia que eu estava vendo um trem descarrilado da Estação Central, mas eu achava tudo lindo", afirma.
 
Cecília contou várias histórias, sempre revelando a paixão pela profissão. Ela trabalhou por muito tempo como repórter, começou na Última Hora de Samuel Weiner, passou pelo Estadão, ficou 10 anos "ganhando dinheiro", na Olivetti. Quando Claudio Abramo a convidou para voltar ao jornalismo ela não hesitou, "mesmo com um salário 40% inferior ao que ganhava na Olivetti", atesta.
 
Emocionou-se com os 31 "jovens jornalistas" e se colocou à disposição do grupo para futuros auxílios. "Depois da época da ditadura os novos repórteres pareciam tão apáticos, vieram tão conformados", lembrou, dando a entender que via alguma diferença nas turmas atuais. Sentada o tempo todo, depois de deixar toda a turma quieta como que em prostração, ela revelou um pouco dos desafios que enfrentou. O preconceito por ter sido, em sua época uma mulher ativa, jornalista e divorciada 4 vezes. Mostrou-se uma ecologista e pacifista. "Minhas maiores bandeiras são pela reciclagem e pela paz".
 
No fim da palestra foi possível ver em alguns dos focas um brilho diferente nos olhos. Brilho que começou com deslumbramento e acabou em comoção.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Novas de um foca

Vou pausar um pouco a pesquisa sobre os faxinais por um tempo. Desde sexta-feira passada (31/08) me encontro em São Paulo para fazer o Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado do Estado de S. Paulo. Algo que eu tento traduzir para os familiares e amigos fora da área de comunicação como um trainee, mas que é melhor traduzido como um curso de extensão universitária (certificado pela Universidade de Navarra) que inclui experiência prática na redação das empresas do Grupo Estado.
 
Desde ontem estou convivendo trinta brilhantes jovens jornalistas. Ainda estou me aclimatando à paulicéia desvairada, tentando acostumar os pulmões e o peito para encarar o batente por aqui. A evolução tem sido melhor do que eu esperava, a turma receptiva, a pensão que encontrei boa, tudo dentro dos conformes -- exceto por um banho de água da chuva, conferido por uma daquelas camionetonas estilo Pajero, que um otário me deu, ao passar rente à calçada num domingo chuvoso. 
 
O desafio agora é fazer uma matéria do metrô de São Paulo, que completou recentemente 35 anos. Ultimamente o sistema tem enfrentado adversidades, tanto pelo aumento do número de usuários, devido, em parte, ao bilhete único, quanto por greves de metroviários e pela cratera que se abriu na construção da linha 4, no ano passado. Notícias boas eles também têm. A assessoria tem uma farta fonte de matérias com as exposições artísticas e bibliotecas dentro das estações, além do recente censo metroviário e dos avanços na construção da própria linha 4 (amarela). O desafio agora é trazer algo novo, ou algo velho com um enfoque diferente. Vejo-me confuso. Assim que tiver um esboço de texto publico aqui. Por enquanto busco a pauta.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Um conto de liberdade

Hesitou por um momento, mas pegou o telefone.
— Alô, a Fernanda por gentileza?
— Ela não está, está na academia, quem gostaria?
— Não tem problema, senhora, eu ligo mais tarde.
Cleverson desliga o telefone. Fernanda era o nome de sua irmã, sempre se pegava perguntando por ela em números estranhos. Mas sabia que naquela cidadezinha do interior só havia uma academia na porta da qual uma Fernanda chorava.
A bolsa rasgada dava indício de que ela lutou por seus pertences. Não conseguiu que se salvassem o celular e a carteira. Cleverson, atento para os detalhes recolhe do chão o batom, o líquido de limpeza das lentes de contato e um pedaço de chocolate parcialmente consumido, envolto pela embalagem amassada.
— Toma aqui, fique calma — disse confiante, sem negar a satisfação de conseguir contato com a beleza daquela menina, perto dos 19 anos.
Ela reteve o choro, respirou fundo, e guardou como pode o que Cleverson lhe ofereceu.
— O que aconteceu? — perguntou, afastando-se um pouco, como que para deixá-la mais confortável.
— Ele levou tudo, rasgou minha bolsa e... — Sem terminar a menina desaba em lágrimas novamente.
— Tente ficar calma, qual é seu nome?
— Fernanda.
— Ok, Fernanda, meu nome é Thiago. Fique aqui que eu vou chamar a polícia.
Omitindo seu verdadeiro nome, Cleverson ponderou, teria mais chance com essa filha da classe média. Tinha verdadeiro horror ao seu nome, sabia que ele denunciava sua condição social, sabia ainda que o sucesso da irmã Fernanda se devia ao nome mais usual que possuía. Se eu me chamasse Roberto ou José, talvez teria sorte diferente, pensava freqüentemente. Mas o destino quis que se chamasse Cleverson e vivesse do seqüestro. Sim, logo depois de confortar Fernanda, ligou para o último número discado de seu celular: CASA.
— Alô, a Fernanda por gentileza?
— Não tem problema, senhora, eu ligo mais tarde.
Ao voltar do orelhão, a menina ainda está lá, parada. Cleverson acena discretamente para o comparsa que a estava vigiando. O plano está saindo conforme combinado, parece ter conquistado a confiança da garota.
— Pronto, já liguei para a polícia, eles pediram para eu te levar até o posto da praça central, para fazer o boletim de ocorrência. Vamos?
— Mas eu tenho que avisar a minha mãe, você pode me emprestar seu cartão?
— Temos que nos apressar, eles podem já ter encontrado seu celular e carteira. Você pode ligar de lá. Vamos?
— Não sei se deveria...
Talvez o plano não estivesse funcionando tão bem, pensou Cleverson. Percebe que estão sozinhos e recorre ao projeto alternativo. Dá um passo em direção a ela, ergue a blusa e mostra sua 9mm cromada apertada contra a barriga.
— Vamos! — ordenou.
Fernanda empalidece. Cleverson acompanha seus olhos procurando socorro e só encontrando seu comparsa parado junto ao poste. No outro lado da rua um ômega preto a aguarda com motor ligado. Ela não tenta pedir socorro, sabe do que se trata. Deve ser forte essa aí, calculou Cleverson, enquanto sua vítima prosseguia seu caminho para o carro em silêncio, como o animal que segue ao matadouro.
Cleverson abre a porta e conduz Fernanda para o banco de trás. Ao seu lado está o mesmo menino que minutos antes a havia roubado. Agora, já despojado do uniforme de trombadinha, transveste-se em roupas e acessórios mais nobres, uma blusa de toca, óculos escuros e fone nos ouvidos. Quem assume o volante é o homem do poste. Cleverson senta no banco do carona, ajusta o retrovisor para si e fica com os olhos atentos na fronte de Fernanda.
A casa aonde chegam é escura e úmida, num dos bairros mais pobres daquele pequeno município. Em quantos quartos como esse o mesmo Cléverson já tinha passado? Não só como cativeiro mas também como lugar cativo esses pequenos cômodos de madeira tinham dominado toda sua vida. Em um desses amontoou-se com seis irmãos, incluindo a Fernanda, por mais de 10 anos.
Ele retirou o capuz de Fernanda e apresentou os cômodos:
— Aqui está o colchão, na jarra tem água limpa. Logo traremos comida. Quando quiser ir ao banheiro bata na porta. Não tente gritar ou fugir senão nós te matamos.
Em silêncio, a garota fita fixamente os olhos de Cleverson. Ele nunca tinha observado uma reação como essas. Normalmente suas vítimas choravam cabisbaixas, razão pela qual deixava por horas o rádio ligado num volume alto. Por um momento esqueceu que se tratava de um seqüestro. Quedou-se imaginando como seria a vida ao lado de uma mulher como aquela.
No outro cômodo, seus comparsas copiavam os telefones mais importantes retidos no celular de Fernanda. Em instantes a bateria acabaria e tudo poderia ser perdido. No topo da lista, em caligrafia infantil, figurava um substantivo: CASA.
Notando a distração de seus colegas e não se contendo diante do olhar fixo da vítima, Cléverson avança. Beija e estranhamente é correspondido num misto de lágrimas e lascívia. Quando percebe que saiu do estado de transe em que se encontrava já está sem camiseta e com Fernanda nua à sua frente, deitada no colchão. A agitação do sexo transforma o pequeno quarto em sauna e todo o resto em silêncio. Um silêncio de suspiros e barulhos imperceptíveis para todos e abafados pelo rádio que tocava os sucessos sertanejos da AM.
Deliciado e saciado, ele emerge do quarto. O suor lhe irriga o rosto. Sem titubear pega o telefone, mas antes avisa:
— Vou ligar para a casa dela, silêncio!
...
— Alô, a Fernanda, por gentileza?
— Ela não está, está na academia, quem gostaria?
— Escute aqui, minha senhora, a senhora é a mãe da Fernanda?
— Sim, sou, quem está falando?
— Quem está falando não importa, o que importa é que a sua filha está correndo perigo.
— Como assim? Ai meu Deus!
— Fique calma minha senhora, eu não vou fazer nada com ela, se você colaborar...
— Por favor, me diga onde ela está! Por favor!
— Você vai ter que ser paciente agora. Não ligue para nenhum número, nem para a polícia, senão eu mato ela. Você não ia querer deixar a Fernanda Costa Faria, em seus 19 aninhos morta, não mãe?
— Não, por favor!
— Você vai fazer o seguinte, vai comprar 30 cartões de R$ 10,00 da sua operadora de celular e vai passar para mim os códigos, para que eu possa continuar a entrar em contato com a senhora. Daqui a trinta minutos eu vou ligar aí e quero que você me entregue esses números.
— Está bem, está bem.
Cleverson ouvia o choro da mãe, sabia que tinha feito um bom trabalho. Sabia que dali trinta minutos teria os códigos. Pela primeira vez sorri. Libera um pouco da tensão e tenta mentalmente refazer os passos de sua vitória. Sabia que a Fernanda desligava o celular toda vez que ia para a academia, nas terças e quintas, onde ficava por mais de duas horas. Sabia seu nome porque mandara uma falsa mensagem dias antes, dizendo que ela ganhara uma viagem pela sua operadora de celular. Atendeu-a, ouviu sua voz doce e coletou seus dados, o telefone da casa, nome, idade e descrição física.
Hesitara por algumas vezes antes de dar o derradeiro telefonema, precisava imaginá-la, possuí-la. Teve que se projetar através das espessas paredes de sua cela, ir ao seu encontro. Imaginou-a como sempre quis, como quis possuir a sua irmã Fernanda, a empregada doméstica bem sucedida, num pequeno quarto quente e úmido. Sim, mais uma vez conseguira, a sudoração dos vários homens empilhados no presídio não o abalava mais. Tinha certeza que eles, lá fora, eram os verdadeiros prisioneiros.

domingo, 12 de agosto de 2007

Sob o olhar da Sociologia dos Problemas Sociais

Como eu já disse, muitas de minhas vontades e dúvidas a respeito dos faxinais vieram depois de uma rápida análise do tema para uma reportagem. Na verdade o interesse surgiu ainda antes, com um primo de um primo meu, cargo comissionado do IAP (Instituto Ambiental do Paraná), que trabalhava com o assunto. Ele me explicou, na época como os faxinais eram tratados com diferenças inclusive dentro das próprias esferas governamentais. Como a SEAB (Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento) queria a extinção dos faxinais, devido ao sistema de criação baixa (porco, galinha e cabrito) solto, em contato com as hortas.

Na internet, a despeito de algumas pesquisas do governo, o único material que encontrei foi a dissertação de mestrado em Economia pela UFPR, de Márcio da Silva, intitulada "A contribuição de florestas de araucária para a sustentabilidade dos sistemas faxinais". O autor trabalha com praticamente toda a literatura sobre o tema, o que não soma mais de cinco ou seis publicações. Entre as definições dos faxinais trabalha com a da professora CHANG, uma das primeiras pesquisadoras a trabalhar com faxinais, que define a composição dos faxinais a partir de características econômico-geográficas. Logo de início Da Silva descarta a hipótese da recente pesquisa da professora Madalena Nerone, que tenta explicar o modo de produção a partir da tradição luso-espanhola.

Portanto, Márcio explica como os faxinais surgiram a partir das condições materiais que aquela população enfrentou, em meados do século XIX, quando a região foi ocupada. As terras, de vasta predominância verde eram exploradas por seus proprietários então apenas para a extração da erva-mate, que faz parte da mata nativa. Dessa forma, eles deixavam que seus empregados habitassem na floresta, com suas criações para subsistência. O que aconteceu é que esses empregados acabaram se tornando posseiros, e o sistema de terras coletivas perdurou, mesmo depois de mudados os proprietários dos lotes. A explicação para a permanência da mata é devido à formação geográfica. O terreno plano, na região, embora de maior profundidade e facilidade, era mais ácido que o de pé-de-serra, ou fundo de vale, como queiram. Por isso as roças eram feitas nos sopés dos montes, devido à fertilidade do solo. Além do mais, a floresta próxima às casas oferecia clima mais ameno e a possibilidade de continuar o manejo da erva-mate.

Me ative, no entanto às definições de faxinais que Da Silva apresenta, já que sua abordagem posterior parte para a área da economia ecológica. Um ramo um pouco diferente do que pretendo em minha pesquisa, embora também fascinante. Ele pretende trazer um modelo de desenvolvimento sustentável, como preconiza a economia ecológica, para dentro dos faxinais. Não que o modelo faxinalense não preserve a natureza, mas porque ele é economicamente inviável. A própria degeneração dos faxinais é prova disso. Eles perdem dia a dia espaço para o agronegócio. Daí a sugestão do manejo do pinhão como alternativa de renda, junto com outras formas de financiamento, como a negociação de créditos de carbono.

O que pretendo, conforme disse no post anterior, é trabalhar a partir do vislumbre da sociologia dos problemas sociais. Algo na linha do que Mário Fuks fez em sua tese de doutorado posteriormente editada no livro "Conflito ambiental no Rio de Janeiro". Nela, o autor, através da análise de discurso, identifica como o tema do meio ambiente surgem em litígios judiciais acompanhados ou impetrados pelo Ministério Público.

Para tanto, Fuks parte da definição do caráter universal do Meio Ambiente. A constituição de 1988 caracteriza como meio ambiente também os aspectos sócio-culturais de um povo. Daí que grande parte das ações ambientais no Rio de Janeiro estarem justamente tratando do ambiente urbano, e não do natural, como seria de se esperar. E dentro do ambiente urbano, tratando quase que exclusivamente da ocupação do espaço urbano. É aqui que, já no começo identifico algo com o tema dos faxinais. Primeiro na universalidade da questão do meio ambiente. Não é de se espantar que a primeira menção a faxinal na legislação brasileira venha justo no decreto que trata da distribuição do ICMS ecológico (Decreto Estadual 3.666/97). Apesar de incluir os faxinais na mesma categoria das ARESUR (Área Especial de Uso Regulamentado), sem, portanto, considerar inicialmente os aspectos sociais, sua consequência é a organização gradativa dos faxinais, e o interesse de algumas ONGs nessas áreas. Essa é uma descoberta de FUKS que gostaria de explorar em meu trabalho, como que determinada lei opera na definição de um problema social.

O caso dos faxinais é emblemático, já que o papel do Estado não vem somente citar e destinar recursos para essas áreas, mas também em propiciar o surgimento de associações, como a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, que surge depois de encontro propiciado pelo IAP, em 2003. A consequência veio em 2006 com o reconhecimento dos faxinais como uma das Comunidades Tradicionais Brasileiras (voltarei ao assunto em outro post). Talvez seja isso precisamente o que pretendo alcançar com esse trabalho. Como o Estado precede a organização social nesse caso. Ou será que o processo seria inverso. Tenho ainda que conseguir acesso ao processo de formação desse decreto de 97, se é que isso é possível. Isso talvez elucidasse algumas das coisas. Fato é que hoje tramita na Assembléia um projeto de lei exclusivamente destinado a reconhecer os faxinais no Paraná e oferecer ao seu povo condições de reprodução social. Tenho o projeto em mãos ele estará num post oportuno, com comentários. Enfim, algumas perguntas permanecem, outras surgem.

terça-feira, 31 de julho de 2007

Definindo os faxinais e introduzindo o assunto

Há dois anos aproximadamente, tomei conhecimento dos faxinais no Paraná. Embora tenha morado praticamente toda a vida a poucos quilômetros das áreas de faxinal no Paraná (em Guarapuava, centro sul do Estado) e tenha ouvido muitas vezes as pessoas se referindo a um local ou outro como faxinal, nunca tinha me dado conta da importância do assunto, cultural e ambientalmente falando.

Para quem não sabe, faxinal é um sistema de produção agrícola rudimentar e comunitário. Ele funciona mantendo uma área de mata nativa, que serve de criadouro comunitário, para pequenas criações (porco, cabrito e galinha, notadamente) e onde estão construídas as casas de seus moradores. No entorno dos faxinais é que acontece a atividade agrícola propriamente dita, as roças, quase sempre de milho, fumo ou soja.

Os faxinalenses, dessa forma, sobrevivem da agricultura e da criação para subsistência. Seu modo de produção comunitário fascina os pesquisadores e jornalistas que como eu, tiveram a oportunidade de adentrar os rincões da Floresta com Araucárias e conversar com alguns moradores. Na época que fiz minhas visitas, em fevereiro do ano passado, pude entrevistar alguns moradores mais antigos dos faxinais em Prudentópolis. O município que abriga cerca de 50% dos faxinais no Paraná é também o que mais recebeu imigrantes ucranianos no Estado. Dessa forma, os faxinais prudentopolitanos são predominantemente compostos por descendentes desses imigrantes.

Quando pedidos para explicar a origem dos faxinais, os moradores acabam recorrendo a especulações e muitas vezes à tautologia, já que o sistema não parece ter sido uma herança ucraniana. Muitos o justificam como uma herança indígena, dizendo que os imigrantes assentaram suas casas nos mesmos locais tradicionalmente ocupados pelo grupo coroado que ali habitou, e fizeram suas roças também nos mesmos locais. Até porque a própria derrubada da floresta, naquela época (fins do século XIX) era tarefa árdua.

Outros no entanto, preferem simplesmente dizer que era costume dos antigos, fazer a roça no barranco ("a Róça nas baRócas", naquele forte sotaque ucraniano), e deixar os lugares mais planos com a mata, para moradia e criação. Um recente trabalho de doutorado da professora Madalena Nerone apontou para o faxinal como uma possível herança lusa, já que o sistema se assemelharia muito com um sistema de terras coletivas numa região fronteiriça entre Espanha e Portugal (que agora não saberia lhes explicar com mais detalhes simplesmente porque quando conversei com a professora, sua tese ainda não havia sido publicada e ela preferiu não me fornecer o trabalho, com medo de plágio).

As dúvidas sobre a origem não deixam menos interessante e não tornam, também, menos problemática a situação dos faxinais. Um sistema de propriedade coletiva dificilmente resiste às garras do capitalismo, personificado pelo agronegócio no campo. A expansão das lavouras de soja tem dizimado os faxinais, que estão praticamente se extinguindo no Estado. Ao mesmo tempo, a própria Secretaria de Agricultura, que vê com maus olhos a criação de animais à solta, próximos a áreas de horta ou coisa parecida é um fator desestimulador da continuidade do sistema.

As tentativas de proteger os faxinais até agora contribuiram para complicar um pouco mais a situação dos faxinalenses. A inclusão dos faxinais na pioneira Lei do ICMS Ecológico, em 1997, culminou por impor uma visão de que o importante era a mata e não o modo de produção. O repasse de dinheiro, por sua vez, politizou os próprios faxinalenses, que passaram a piquetear (cercar) suas propriedades dentro dos faxinais, (já que o que interessava era a mata em si), acabando com o sistema de criadouro comunitário.

No ano passado, um avanço propriciado pelo governo federal, deu novas esperanças aos faxinalenses. O reconhecimento do faxinal como uma comunidade tradicional do Brasil incluiu, dessa vez, os aspectos culturais e econômicos dos faxinalenses na história. No início do mês passado (junho de 2007) os faxinalenses da parte atendida pela ONG Articulação dos Puxirões, promoveu uma audiência na Assembléia Legislativa do Paraná, para propor uma lei estadual que reconhecesse os faxinalesnes oficialmente, oferecendo meios para que eles se mantenham e não cedam às pressões do agronegócio.

Na ocasião foi lançado um mapa de Cartografia Social dos povos tradicionais brasileiros. No Paraná, os faxinais de Prudentópolis simplesmente não constavam no mapa. Isso porque estavam na jurisdição de outra ONG, o Instituto Guardiões da Natureza. Em conversas separadas com pesquisadores e membros das ONGs, pude perceber que há de fato uma territorialidade dessas organizações, que eu pretendo cobrir em um trabalho de mestrado. Essa é a pretensão, ao menos.

Intro, uma breve

Olá! Já faz um tempo que queria retomar um blog e colocar alguma seriedade nele. A minha intenção é ir publicando os resultados de minha pesquisa na pós, assim que forem surgindo e alguns possíveis trabalhos jornalísticos que tenha pela frente, fotos e texto inclusive.