Dia 22 de setembro é dia do Rio Tietê. O rio que há 60 anos abastecia a cidade de São Paulo está morto. Suas margens foram canalizadas e asfaltadas. Tornaram-se Marginais. O esgoto da megalópole hoje corre em seu leito. É levado por dezenas de outros córregos também sepultos, imperceptíveis não fossem as freqüentes enchentes da cidade.
Em comemoração ao dia do rio uma empresa, organizada pelo Instituto Navega São Paulo, pretende levar um grupo de jornalistas e ambientalistas por um pequeno passeio pelo rio. O barco branco contrasta-se com os excrementos pretos que dão o tom da água do Tietê. Imponente, com três andares de altura, a embarcação dá a distância necessária para tornar o passeio menos impactante.
No primeiro andar, uma sala climatizada, janelas fechadas com os toldos brancos e uma apresentação e PowerPoint estão prontas. No segundo piso, um pequeno coquetel recepciona os visitantes. Ali o calor já se faz presente e as janelas estão descobertas.
É dali que se pode ver o homem que toma banho e lava suas roupas num dos dutos que abastece o rio. No concreto, ao sol, estão estendidas duas camisetas pretas, uma calça jeans, um par de meias e tênis pretos. Ao lado estão também um isqueiro, um xampu, um barbeador e um sabonete. O homem de bermuda se utiliza de um balde verde para se enxaguar.
Enquanto no barco os presentes no evento comem uma banana, um sanduíche natural devidamente embalado, ou vêem a gradação da água do rio Tietê — da nascente límpida, passando pelo negro trecho paulistano, até a foz onde torna a ficar translúcida —, o banhista se esgueira pelo túnel. Aperta-se contra a manilha e tira o calção. Nu ele olha para o barco, mas não interrompe o enxágüe.
No terceiro andar, que é um terraço, estão os cinegrafistas, fotógrafos e políticos. A vereadora Soninha também. Veio de bicicleta, politicamente correta no dia mundial sem carro — o capacete pendurado no pescoço não deixa dúvidas disso. Junto com ela cerca de quarenta jornalistas pegaram o ônibus na frente da UniSantana, enfrentaram o trânsito das marginais e foram até o barco, que estava a 600 metros de distância.
Do "terraço" se escuta o trânsito das marginais e se sente o sol na nuca. O vento interrompe o cheiro do rio. Fedor que lá embaixo, na hora do embarque, embrulha o estômago dos visitantes. Talvez seja por isso que a maioria deles esteja nesse local, não por acaso acompanhados dos fotógrafos e cinegrafistas.
Os grandes motores da embarcação, cujos barulhos lembram os de um ferryboat, começam a funcionar e abafam um pouco a concorrência de seus irmãos menores que trafegam pelas marginais. Os organizadores do INS convidam todos a descer e ouvir uma palestra sobre a empresa. Lá João Mogi (peguei o nome de ouvido), um japonês presidente do INS e de uma empresa contratada para o aprofundamento da calha do rio Tietê, conta como pretende ainda ver o rio revitalizado e apto ao transporte hidroviário. Antes, o "mestre de cerimônias" integrante do INS passa algumas instruções, entre elas a de que "em hipótese alguma a água [do rio] pode entrar em contato com as pessoas".
Com as janelas fechadas começa o passeio. A palestra de Mogi não dura muito. A curiosidade de se olhar a água que em volta do barco e as outras embarcações (canoas, botes e caiaques) que também participam do dia comemorativo dispersa os palestristas. Nem mesmo o ar condicionado segura os visitantes. Sozinho, Mogi segue o fluxo de gente. A maioria sobe ao terraço, onde é possível aproveitar a vista, ser visto, fugir do cheiro e curtir a viagem.
O trajeto é pequeno e ninguém é tolo o suficiente para querer algum dia fazê-lo de novo. O barco sai da altura da ponte das Bandeiras, passa por baixo da via e segue até a altura do Anhembi, onde tenta fazer a volta. Tenta mais de uma vez, porque na primeira quase vira a canoa movida por cinco ambientalistas mais propensos a aventuras.
Eles são da turma que remou e que não quis se cobrir com máscaras de gás, capas de chuva e botas de borracha. Esses são os que estão nos botes infláveis. São cinco botes com cinco pessoas, quatro remando e um fotografando ou filmando. Esses estão mais protegidos.
Em terra, o grupo que acompanha aplaude, fotografa e filma, da ponte e das margens do rio. Margens que acumulam uma pequena caatinga que se forma entre o concreto e a água. Mato, pó e lixo.
Tudo muito diferente da escadinha montada para o acesso ao barco. Ela, como o barco, também é branca. Também foi colocada ali às pressas — a cal escorrida pelo concreto denuncia isso. O incômodo de um dos anfitriões, o banhista, também dá indícios de que a visita foi inoportuna e surpresa.
Findo o passeio, a organização avisa aos jornalistas que haverá mais um passeio, igual ao anterior antes da volta. Ressaltam que o ônibus ainda vai demorar outra meia hora antes de conseguir chegar ao local. Note-se aqui que o ônibus com o qual esse pessoal chegou ao barco foi improvisado, já que o original ficara preso no trânsito, em pleno dia mundial sem carro. Mesmo assim a maioria sai.
O cheiro é insuportável, dá nó no estômago. O vapor de merda que se acumula no nariz, impregna-se nas roupas e que escorre pelo suor é demais. Quando o grupo de canoístas quase virou, quem estava ali na beira do primeiro andar pode ver como eles habilmente remavam entre os dejetos, entre os pedaços de fezes que formam a superfície do rio. Volta e meia, pelo revolver da água causado pelos grandes motores, um ou outro lixo mais elaborado, pneus inclusive, apareciam à superfície.
Por isso a maioria deixa o barco. Esperam os canoístas subirem, pacientemente, para não correrem o risco de entrar em contato com a água. Só à beira da Marginal é que percebem o porquê do ônibus: os carros. É simplesmente impossível atravessar a marginal a pé. O fluxo intermitente justifica todas aquelas barraquinhas, trilhos e fogueiras nas faixas de terra que separam as pistas: as pessoas simplesmente não conseguem atravessar a pista entre 6h e 20h.
No alto da ponte um ex-sindicalista e neo-ambientalista propaga alguns gritos de ordem híbridos. São brados ecológicos na rima e entonação metalúrgica. Do alto de seu caminhão de som reclama dos motoristas que não deixaram seus carros em casa para sofrerem como simples pedestres. Reclama das guerras e dos líderes. "PAZ e AMOR!", anuncia um colega seu de outro caminhão de som ainda maior. No ritmo do Axé e com a faixa "Mega Feirão de Veículos".