domingo, 28 de outubro de 2007

Da importância da cultura à revisão textual

Paco gosta de transformar suas aulas numa experiência heurística. Para a turma brasileira do Curso de Jornalismo Intensivo, o método pareceu estranho. Ao fim de uma semana intensiva, no entanto, todos participavam. A descoberta fixa-se fortemente quando surge da boca de quem aprende . Pequenas frases tornaram-se grandes ensinamentos. Lições que, em nosso caso, foram marcadas pelo sotaque galego desse professor da Universidade de Navarra.

A seguir está um relatório que tive que fazer, novamente no dia 24 desse mês. Comentava um pouco dos conteúdos da aula de Paco.

No período da manhã de quarta-feira José Francisco (Paco) Sanchez retomou a palestra do dia anterior. Começou pelo conceito de cultura. Segundo Paco, as culturas se dividem pelo nível cultural que alcançam. Foi precisamente pelos resultados alcançados por determinadas culturas que ele comparou já em aulas anteriores a cultura judaico-cristã ocidental com outras.

Alguns focas ficaram chocados pela possibilidade de superioridade de uma cultura sobre a outra. As questões que surgiram na aula ficaram em torno do proceder jornalístico. Como o jornalista pode agir sem preconceitos se parte do princípio que sua cultura é superior às outras? Paco respondeu que a cultura ocidental nem sempre é superior, continua sendo débil em muitos casos. Mas quando a questão é Direitos Humanos, então ela é efetivamente mais evoluída. Como exemplos ele citou o respeito às mulheres, às demais religiões e às crianças.

Paco diz que a discussão sobre a cultura é importante porque o jornalista escreve sempre o capítulo três. Isso sem saber o que se passou nos capítulos um e dois e sem idéia do que será o quatro. Ou seja, o exercício do jornalismo exige uma formação sólida. Os jornalistas produzimos cultura constantemente.

O jornalista, para Paco, é como um médico. Precisa ter a capacidade de diagnóstico. Uma espécie de diagnóstico cultural que saiba dar às suas matérias o mesmo sentido que as coisas têm na realidade. Por isso é preciso ler muito. Segundo ele, no mínimo um metro de livros (deitados um sobre o outro) por ano. Esse é um dos itens da lista de proposições de Paco, que também contempla a lembrança constante de que as coisas são complexas.

Depois das discussões filosóficas e culturais, Paco apresentou a estrutura argumentativa. Introduziu os elementos básicos da argumentação e dividiu-a em dois tipos: persuasão e convencimento. Em seguida pediu que analisássemos dois editoriais e identificássemos que tipo cada um era, se persuasivo ou argumentativo.

Para mais Paco: www.pacosanchez.bitacoras.com
Recomendação do próprio Paco, ler em Capítulos de Libros os seguintes posts: La escritura como modo de vida; e La narración periodística.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um retrato

Um rosto anguloso emoldurado por uma barba aparada. Um sujeito boa praça, vestido para o ofício de jornalista: uma camisa de mangas dobradas, uma calça jeans e sapatos de couro. Meio formal, meio desleixado. Porque não posso revelar seu nome verdadeiro, vou chamá-lo de Adão. O rebatismo não é só pelo pomo-de-adão avantajado que tem esse meu amigo, mas também pelo som. O som grave e forte da palavra Adão que me lembra sua voz. Uma voz de destaque.
Adão lembra também algumas características superlativas desse personagem. O costume que tem de, por exemplo, colocar no aumentativo os nomes de alguns colegas.  
— E aí Chicão, beleza? — Assim me cumprimenta toda a manhã. Sinto-me orgulhoso, confesso. Do alto de meus 1,65 metro ser chamado de Chicão é reconfortante, e não deixa de ser uma boa piada.
Adão é um fanfarrão. Ele é assim positivo. O tipo de sujeito que emana o lado bom da vida. Encara com um sorriso as situações mais adversas. Lembro-me muito bem de certa madrugada, quando passeávamos perdidos em São Paulo. Acreditávamos ser possível voltar a pé para casa, cruzar três ou quatro bairros ou coisa que o valha, já um tanto mareados pela cerveja. Lembrei de uma frase predileta de meu pai. "Dois cagões vão longe". Persistimos no erro até vermos o preço inflado do cardápio de um restaurante, que ficava onde acreditávamos ser o meio do caminho: R$ 27,00 por um hambúrguer à moda da casa. Um absurdo, o suficiente para irmos de táxi e ainda comermos mais perto de casa.
— Acho que devemos pegar um táxi — disse ele.
— É, acho que a gente não chega em casa a pé.
Adão não receou até que eu receasse. É, sobretudo, um companheiro.
Assim o conheci companheiro e fanfarrão. Assim o tinha resolvido. A convivência no Curso de Jornalismo Intensivo do Estadão é que o transformou no jornalista. Pouco a pouco olhei para além daquele personagem das festas e noitadas.
Vi um jornalista dedicado.
Reparei que aquelas mangas dobradas estavam mais para arregaçadas. E que o sapato poderia até estar sujo de lama ou do que quer que fosse preciso para que a pauta fosse cumprida. Percebi um olhar sério intermitente entre os sorrisos, de alguém prestes a fazer algo grande. Finalmente li seus textos. Ali encontrei o Adão desses intervalos sérios, o caçador de personagens. Textos bem medidos. Palavras graves e fortes como a sua voz.U

Apenas um porteiro

No domingo, por volta das 11 horas Acácio notou a correria. Os moradores da região do Parque Estadual do Juquerí procuravam os guardas ambientais para reportar um foco de incêndio. Logo em seguida outras guardas, que monitoravam por motos o parque chegam também com más notícias. Os bombeiros chegam duas horas depois. Deixam suas viaturas e emprestam as três pickups da Secretaria do Meio Ambiente para o acesso às chamas. O sol quente e o tempo seco pioram a situação. O controle é impossível. Por volta das 17 horas o primeiro helicóptero águia chega ao local. Mais tarde outra unidade auxilia no combate e identificação dos focos, vindo diretamente do autódromo de Interlagos.
 
São três focos de incêndio, me diz Acácio, da portaria do parque. São quase 19 horas e ele tenta explicar o caos. Tem muita fumaça, muita correria. Ele é só um porteiro, só indo lá mesmo para ver como está a situação. Não dá para falar por telefone telefone. Por esse horário começa uma ventania, que os bombeiros diriam depois, auxiliou ainda mais para espalhar as chamas. O vento, no entanto, precedeu a chuva, que deve ter apagado o incêndio.
 
Nascido em Franco da Rocha, Acácio nunca se imaginou trabalhando no parque. Tem orgulho do trabalho. Ele suspeita de incêndio criminoso. "Aqui tem muita gente com problemas com o parque, desde que ele virou área de preservação ambiental". Desde que se tornou APA, o parque proíbe a construção e limita a entrada de visitantes. "Mas o pessoal dá a volta e entra por outros cantos, foi muita coincidência três focos ao mesmo tempo", diz. Pede para não falar em seu nome, para não por sua opinião no jornal. Acácio é um nome fictício usado para esta matéria. "Não sou da secretaria, sou de uma empresa terceirizada, não posso dar opinião".
 
Por fim, ele desliga, lá perto das 19h20. "Agora você já me segurou para depois do expediente, estão me chamando aqui", ele diz como se estivesse prestes a bater o cartão enquanto parque todo pegasse fogo. Às 8 horas os bombeiros ainda não saíram do parque. Às nove começa a chuva e o descanso desses domingueiros. Acácio, quem sabe, já estivesse em casa a essa hora, imaginando as cinzas do dia seguinte. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Isso também é São Paulo -- APA do Capivari

Iraci Conceição da Silva e João Ferreira de Morais enfrentam a pé o sol e a poeira das 13 horas do domingo. Voltam para casa. Ela, 39 anos, leva no colo o pequeno Lucas Ferreira da Silva de Morais, de oito meses, que dorme embalado pelos passos pesados. Saíram cedo de casa para enfrentar quase duas horas de viagem até o bairro da Barragem – ensaio de civilização mais próximo à antiga vila ferroviária da estação Evangelista de Souza, onde moram.

Localizada no extremo sul da capital, a estação já teve escola e mais de 200 moradores. Nos anos 70, quando havia movimento de passageiros, seus
habitantes viviam de comércio e serviços. O acesso à cidade era mais fácil. A substituição do transporte ferroviário pelo rodoviário esvaziou gradativamente o vilarejo. Em 1997 o transporte de passageiros encerrou-se de vez. Já era capenga e dependia das condições da ferrovia, que raramente eram favoráveis.

Daquela época só resta hoje a cantina, que foi convertida em bar. Quinze anos atrás, quando Antônio Cezar Leandoro se instalou na estação, o movimento de passageiros era pequeno, mas suficiente manter uma circulação de cerca de 200 pessoas por dia em seu comércio. Hoje ele atende 40 pessoas num dia de bastante movimento, contando com os trabalhadores da ferrovia e habitantes da Área de Preservação Ambiental (APA) do Capivari-Monos, que engloba a estação. São guardas municipais, índios, lavradores e campistas.

Iraci passa por destroços de trilhos e de trens no caminho de casa. Quando chega onde ficam os truqueiros, o clima já virou. Da poeira seca não resta nada. Agora ela respira a neblina úmida da serra do mar. Tenta proteger o peito nu de Lucas, que ainda dorme. "É um sofrimento muito grande, ter que caminhar duas horas para conseguir remédio". Ela fala no meio de uma encruzilhada escondida pelas nuvens. Mal dá para ver a subida íngreme que leva à casa dela. Os truqueiros conversam alto sentados numa pequena roda. Dá mesmo para imaginar que jogam truco. "Truqueiro é quem troca as pastilhas de freio do trem, antes dele descer a serra", explica Jão Ferreira, 57 anos, antes de acompanhar sua esposa para casa.

A conversa e o ritmo de descanso dos trabalhadores é interrompida pela chegada de uma composição. Agora todos vão aos seus postos. As pastilhas novas já estão distribuídas ao longo do trilho para facilitar a troca. No bar do Toninho uma leva de trabalhadores chega. Eles acabaram de "largar" o serviço. Pedro Ribeiro, "só Pedro Ribeiro", é um deles. O menino de 19 anos trabalha há um ano como ajudante geral de linha, pela empreiteira Santa Rosa, contratada da América Latia Logística para a manutenção da linha. Ele mora em Barragem, e vem todo dia para o trabalho duro, mas não reclama. Os R$ 480,00 que ganha somados às horas extras dos domingos lhe são muito bem-vindos.

Rodrigo Bruno da Silva Santana, 21 anos, compra duas garrafas de cerveja no bar da estação. Ele trabalha há quatro anos na manutenção da ferrovia. É genro de Toninho, mora com Fabíola Aparecida Dumont, 21 anos. Ela reclama da monotonia que enfrenta no local. Passa os dias cuidando da casinha, que um dia já foi regularmente cedida a seu marido, pela administradora da ferrovia. "Nós pagávamos pouquinho, só para constar no papel", diz Rodrigo.

A América Latina Logística (ALL), concessionária que opera a ferrovia, devolveu as residências à Rede Ferroviária Federal (RFFSA) em 1999. As casas, bem como várias estruturas do pátio da estação Evangelista de Souza, foram vítimas de vandalismo. Aos poucos a mata atlântica da APA vai engolindo as construções depredadas. Das dez que existiam à beira da linha do trem, hoje só podem ser identificadas seis. Quatro delas são habitadas. Rodrigo mora na casa mais próxima à estação. O irmão dele, Luis Fabiano da Silva Santana, e sua mãe, A
na Maria da Silva Santana, 57 anos, moram nas casas mais distantes. "Eu vivo aqui há oito anos, tive que reformar e pintar a casa, que estava pichada", diz ela.

A estação está mais conservada. Foi devolvida para a Rede Ferroviária em 2002. As paredes estão pintadas e não há vidros quebrados. O bar em que Toninho trabalha e vive só foi repassado para o governo em 2004. A ALL mantém hoje uma estrutura mínima de operação no local: três guaritas, duas caixas d'água, duas casas de força, o posto de truqueiros, a casa de comando, um tanque e "quartos diversos" com operacional.

Perto das casas, beirando os trilhos de trem, há um pequeno campo de futebol, onde ocorrem os amistosos dos ferroviários e crianças da região. Jean Leandoro já disputou ali várias partidas. Ele gosta de morar em Evangelista de Souza, mas reconhece que se quiser conhecer o mundo, vai ter de se mudar. "Eu queria fazer um curso de informática. Se eu quiser fazer uma faculdade, vou ter que sair daqui", diz ele. A escola em que Jean estuda fica no bairro de Barragem. Em dia de aula uma van o leva para estudar.

A dificuldade das crianças desanima o casal que pretende ter um filho. Rodrigo e Fabíola já pensaram no assunto. Eles conhecem o exemplo de Idalci e João – as longas caminhadas até a Barragem. "Aqui é bom para homem, mas para mulher e criança não dá", diz Fabíola. Ela enfrenta o tédio do dia-a-dia conversando com a sogra ou cuidando da casa. Rodrigo reconhece o marasmo da esposa, mas não pretende sair. Nos quatro anos que está na casinha ferroviária nunca lhe faltou trabalho.

Para as eventuais emergências existe o posto da Guarda Municipal Ambiental, instalado em um dos escritórios da estação. Ali há sempre três guardas de prontidão, 24h por dia. "Quando alguém aqui passa mal, ou tem acidente, a guarda leva para Parelheiros", diz Rodrigo. O posto foi instalado na região quando a APA foi criada, em 2001. Há dois anos, uma nova unidade foi construída na APA, mais próxima a Parelheiros. Para lá foi transferida a sede. "Diminuímos o efetivo, mas continuamos dando plantão", explica o inspetor chefe regional da Guarda, Calos Bento da Silva.

Desde que a Guarda Municipal Ambiental foi para a região, o vandalismo diminui. "O local era ponto de encontro para usuários de drogas e local para a desova de corpos", diz Bento. Há tempos a violência não é uma questão para os moradores do local. Existe sim uma ameaça constante de acidentes ferroviários. No início do ano uma campista morreu depois de cair nos trilhos quando pegava "carona" pendurada no trem de carga.

Outro medo tem a ver com a expulsão dos moradores. Com exceção de Toninho, que diz pagar aluguel ainda hoje para a Rede Ferroviária, os demais habitantes da vila ocupam irregularmente as casas. Houve rumores de que seriam retirados para abrir caminho às obras do Rodoanel. As obras, segundo a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente, passam por outra APA, a do Bororé-Colônia.

A secretaria tem um plano para o incentivo do turismo na Estação Evangelista de Souza. Pelo projeto, as construções em volta da estação seriam reformadas e um trem turístico – uma Maria Fumaça reformada – voltaria a circular no trecho, fazendo um percurso de 11 km, que ligaria o bairro de Colônia Paulista, no distrito de Parelheiros ao bairro Evangelista de Souza. A administração do passeio ficaria sob o encargo da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF).

A situação da Rede Ferroviária Federal, no entanto, não traz alento aos moradores. Extinta em 16 de maio, a rede hoje mantém uma estrutura fantasma, com seus funcionários repassados para a Empresa de Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. (Valec), também estatal.

Enquanto espera o movimento melhorar, Toninho do bar procura aproveitar a ampla paisagem da APA e relembrar o tempo em que trabalhava na cidade. Nos descampados dá suas tacadas de golf. Os oito tacos e nove bolas, conquistados na época em que trabalhava como caddy, são troféus na parede de seu minúsculo bar, logo acima das caixas de cerveja empilhadas e abaixo de um arco e flecha provavelmente doado pelos índios guaranis da região.

Mais fotos em www.flickr.com/photos/paulojustus

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Matérias anteriores

As matérias dos posts anteriores foram feitas para o Curso de Jornalismo Intensivo do Estado de São Paulo. A primeira, sobre os idosos é de um exercício, a pauta do centro, descrito num outro post aqui neste blog. A segunda é uma pauta internacional, sobre o Peru, que todos nós alunos recebemos. Tivemos alguns bons textos na turma e como sempre me vi em apuros no fechamento. Há alguma espécie de pressão, de desconfiança e uso excessivo do manual de minha parte que me irrita muito. Isso leva o texto ao formato quadrado, árido, que tanto critico.

Com relação à produção, a matéria dos idosos foi meu primeiro atraso. Também foi uma de minhas pautas mais confusas. O problema começou na indefinição da própria pauta. Parti para um evento de idosos sem uma idéia fixa do que iria fazer. Percebi que o problema ia mudando conforme eu conversava com os idosos organizados, aliás uma categoria em franca ascensão. Visitei a Vila dos Idosos no domingo, numa confraternização entre os velhinhos moradores. Percebi lá vários conflitos latentes, frutos da falta de critério do governo municipal em classificar os contemplados com o programa. Muita gente lá está por outras contas que não a da idade e outros tantos estão por apadrinhamento político.

Claro está que os idosos organizados também têm suas preferências políticas. Ligados aos movimentos de moradia, dos Sem Teto, muitos deles apresentam um discurso próximo ao radicalismo. Radicalismo no entanto amenizado pela experiência da idade -- talvez por isso eles tenham conseguido a vila dos idosos.

Já a pauta do Peru foi mais tranqüila. A idéia surgiu quando vi o release do livro publicado no site www.casamerica.es. Consegui, com algumas ajudas, o e-mail do escritor e posteriormente seu telefone. Conversei com ele numa longa e, depois notei, pouco produtiva conversa. Alguns detalhes importantes para o decorrer da história, como breves anedotas e datas exatas deixaram o texto um tanto vazio e sem autoridade, ao meu ver. Faltou a mão na entrevista. Para não ficar sem desculpas prefiro deixar claro meu impressionamento com a primeira ligação estrangeira efetivada por meus próprios dedos. Um portunhol estabanado também contribuiu um tanto para o insucesso e a insegurança. Tendo em vista essas mea culpi (haha, inventando um plural aqui), até que o material não ficou tão ruim. Enfim, vamos em frente!

Escritor peruano escreve primeira obra sobre a vida de Abimael Guzmán

O novo livro-reportagem do jornalista peruano Santiago Roncagliolo rompe um silêncio de 15 anos desde a prisão de Abimael Guzmán, um dos mais sanguinolentos terroristas da América Latina. La Cuarta Espada (A Quarta Espada, ainda sem título ainda para o português), retrata a vida do líder do grupo guerrilheiro peruano Sendero Luminoso. Lançado nos países hispânicos no fim de setembro, o livro deve chegar ao Brasil no ano que vem.

Considerado por seus seguidores como a quarta espada do comunismo internacional — depois de Lênin, Stalin e Mao Tse Tung — Guzmán foi o responsável por 40 mil das 70 mil mortes no confronto entre o Sendero Luminoso e o governo do Peru nos anos 80 e 90. Os métodos brutais de luta da guerrilha, segundo Roncagliolo, lançaram as bases de uma ditadura nos anos posteriores à captura de Guzmán, realizada em 1992. "Os militares defendiam suas monstruosidades em nome de um governo civil legitimado de alguma maneira pelo terrorismo do Sendero Luminoso".

Desde sua prisão, Guzmán não dá entrevistas. A base da marinha de El Callao em que está detido junto com outros seis prisioneiros proíbe o contato com jornalistas. Foi com essa dificuldade que Roncagliolo desembarcou no Peru três anos atrás, com a missão de fazer uma reportagem para o diário espanhol El País, no qual trabalha. Esse foi o estopim para o livro. A idéia de se fazer um livro-reportagem já estava em gestação quando ele produziu seu romance político Abril Vermelho. "Durante a pesquisa para aquele livro encontrei histórias muito mais interessantes na realidade do que na ficção. Só me faltava um tema", diz.

Impossibilitado do contato direto com Guzmán, Roncagliolo procurou os familiares do terrorista, carcereiros, policiais, agentes do serviço de inteligência, professores que lecionaram com ele e antigos generais do Sendero Luminoso espalhados pelo mundo. "Tratei de buscar todos que tiveram contato pessoal com Abimael. Existem pessoas do Sendero Luminoso na Suécia e Bélgica, além dos que estão nas prisões", afirma. Trata-se de um rol pequeno de pessoas, já que nos últimos 30 anos, Guzmán esteve durante 15 anos preso e nos outros 15 anos vivendo como clandestino. A partir desses pontos de vista ele foi reconstruindo Guzmán. "Esse é o primeiro livro que se faz com informações dos terroristas, sobre eles falando como eram eles enquanto se dedicavam à luta armada", diz Santiago. A obra procura explicar os motivos por que esses terroristas entraram na guerrilha e como eles se relacionavam entre si dentro do Sendero Luminoso.

La Cuarta Espada é o primeiro livro-reportagem de Santiago Roncagliolo. "É a primeira vez que eu trabalho com fotografia dos personagens. Lidar com uma realidade tão sangrenta tem sido uma experiência muito enriquecedora", diz.  Segundo o autor, são justamente os livros reportagens e crônicas jornalísticas os elementos de renovação da literatura peruana, que normalmente estaria dividida em dois séqüitos. O primeiro ligado à direita de Mario Vargas Llosa faria parte dos ideários urbanos e liberais de Lima. O segundo tem relação com o menos notório escritor José Maria Arguedas, socialista rural da esquerda que se suicidou em 1969, sem conhecer o Sendero Luminoso.
Santiago, 32 anos, não se classifica em nenhum dos lados, apesar de seus pais terem origem na esquerda peruana. Quando criança ele viveu como exilado no México, e só retornou ao Peru em meados dos anos 80. Vive há sete anos na Espanha e se compreende como alguém que acredita num meio termo — na comunhão da igualdade desejada pela esquerda com a manutenção da liberdade pregada pela direita. A distância e a perspectiva de imigrante lhe deram mais elementos para trabalhar como escritor e se compreender como latino-americano.

Um burocrata da morte
O que torna Abimael Guzmán interessante é como o terrorista conseguiu reunir um exército em torno de sua causa sem contar com infra-estrutura, diz Santiago Roncagliolo, escritor do livro-reportagem sobre o líder do Sendero Luminoso, La Cuarta Espada. Guzmán comandava as mortes de dentro de seu escritório, sem contar com apoio de outros países, recursos ou muitas armas. "Para mim foi interessante entrar na cabeça do monstro, do assassino. Tentar pensar como ele chega a ser o que é. Ver como foi seu desenvolvimento ideológico e militar", diz.

Santiago o considera um homem diferente de Che Guevara ou do modelo de revolucionário latino americano habitual, porque não estava no campo de batalha e não era alguém que movia as massas. "Ele ficava num escritório, recebia informes e emitia ordens e planejava campanhas. Era quase que um burocrata da morte. Articulava muito bem a violência e fazia tudo de dentro de seu escritório", diz o autor.

Uma das dificuldades de se escrever o livro foi o posicionamento ideológico complexo do professor universitário que vai aprender guerrilha na China de Mao Tse Tung. "Abimael Guzmán considera a si mesmo e seus seguidores como moralmente superiores. Isso o diferencia de uma pessoa como Vladmirio Montesinos, que só queria mais poder e mais dinheiro", diz Santiago.

Cabeças brancas pedem moradia no Centro

Entre as cabeças brancas, cantigas e palavras de ordem. Na segunda-feira, idosos de várias partes da capital deixaram os Centros de Convivência e as quadras de bocha para lutar por um bem mais substantivo, a moradia. Os insurretos se reuniram às 9 horas em frente à Catedral da Sé, de onde partiram para audiências na Prefeitura Municipal e no Ministério Público.

O protesto foi conduzido por membros do Grande Conselho Municipal do Idoso, do Sindicato dos Bancários e do Grupo de Articulação da Moradia do Idoso na Capital (Garmic). Os manifestantes receberam apoio de outros mais jovens, da Frente de Luta por Moradia (FLM). Estes se concentravam para o manifesto alusivo ao Dia Mundial dos Sem Teto, comemorado junto com o Dia Internacional do Idoso, em 1º de outubro.

Segundo a conselheira municipal do idoso, Maria Eliete de Souza, de 65 anos, a coincidência das datas se adequou às bandeiras dos idosos da região central. "O principal problema do Centro é a moradia", diz ela. A coordenadora do Garmic e também conselheira do idoso, Olga Leõn Quirioga, de 71 anos, confirma a afirmação da colega e acrescenta: "com um bom lugar para morar, a saúde e o lazer vêm como conseqüência".

A multidão grisalha é composta de pequenos grupos uniformizados, cada qual com roupa e bandeira indicando a procedência. O pessoal de camiseta amarela e bandeira verde, por exemplo, representa a Zona Leste, enquanto a turma de camiseta e bandeira branca é do Centro. Idália dos Santos Rodrigues, de 66 anos, participou da passeata com uma bandeira branca na mão, mas sem a camiseta. O descompasso do uniforme talvez represente a ambigüidade de sua luta. Ela quer uma moradia no Centro, mas vive de aluguel em Guarulhos.

Lá ela consegue sobreviver com os R$ 180,00 que lhe sobram da aposentadoria. Os outros R$ 200,00 vão para o pagamento de uma dívida que contraiu dois anos antes. Ela fez o empréstimo, que só será quitado em 2009, para pagar o aluguel do filho. Para complementar a renda, Idáliar presta serviço de diarista duas vezes por mês numa "casa de família", no bairro de Santana. São R$ 30,00 pelo dia de trabalho. "É muito pouco, tudo que tenho é doado", diz, mostrando as roupas e ao sapato gasto.

Nem por isso ela deixa de vir religiosamente às reuniões mensais do Garmic, na Câmara Municipal, toda 3ª terça-feira do mês. Para ela o esforço vale a pena. "Vivi minha vida inteira no Centro, aqui cresci, casei e criei meus filhos. Queria muito voltar para cá", fala. 

Foi o Centro que a família dela escolheu para morar quando emigrou de Termedal dos Fernandes, na Bahia, para São Paulo, há 52 anos. Ao todo, entre as tragédias da morte prematura do marido e da filha mais velha, essa última ocorrida dois anos atrás, Idália viveu 40 anos em cortiços no Centro ou próximos à região central. O último foi na Ponte Pequena, região do Parí, onde morava com um neto e seu filho mais novo. Quando o neto saiu de casa, ela resolveu se mudar. "Meu filho não ajudava nas contas, então preferi morar sozinha".

Idália diz estar cadastrada há 40 anos na Cohab, à espera de uma moradia. Há um ano está no Garmic. Integra hoje o grupo de 1.525 pessoas registradas pelo grupo nos programas municipais e estaduais de habitação. Do total cadastrado, 55% é da região central, de onde surgiu o movimento de moradia para o idoso. "O nome inicial do grupo, inclusive era de Articulação para a Moradia do Idoso do Centro, e não da Capital" explica Olga.

Apesar da falta de moradia, o Centro ainda é o lugar em que o idoso consegue sobreviver com mais facilidade. "Aqui o idoso carente consegue pedir esmola, alimento e viver nos albergues, cortiços ou ocupações. Nos bairros ou na favela isso é mais difícil", diz Olga. A coordenadora calcula que haja 7 mil idosos sem teto. "Mais da metade deles vive nas ruas por opção, porque gostam mais de estarem sozinhos do que morar com a família", diz.

Hoje o artigo 37 do Estatuto do Idoso, garante o direito à moradia. O artigo 38 garante a prioridade na aquisição de imóvel e dá a cota de 3% das unidades residenciais para atendimento ao idoso. "Essa cota deve ser respeitada também nos projetos habitacionais de relocação de famílias ou reforma de prédios", ressalta Olga.

Além das cotas, o conceito de moradias exclusivas para o idoso é algo que começa a se concretizar. Inaugurada em 19 de agosto, a Vila dos Idosos, no Parí, foi o primeiro e até agora único empreendimento habitacional destinado a um grupo social específico em São Paulo. Viabilizado com verbas da Cohab e da Caixa Econômica Federal, o conjunto possui 145 unidades e é um primeiro sinal de mudanças na questão da moradia para idosos. "Achamos que a Vila foi uma conquista, mas ainda há falhas, principalmente nos critérios para a seleção dos contemplados", fala Olga.

Ela lembra que ao contrário do que todos pensam, o idoso prefere protestar a ficar no Centro de Convivência. Segundo ela, estiveram presentes no Dia dos Cabeças Brancas, cerca de 1,2 mil idosos. Na quinta-feira, um evento da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) voltado a lazer e serviços de saúde reuniu 3 mil idosos, segundo a própria secretaria.