quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Um conto de liberdade

Hesitou por um momento, mas pegou o telefone.
— Alô, a Fernanda por gentileza?
— Ela não está, está na academia, quem gostaria?
— Não tem problema, senhora, eu ligo mais tarde.
Cleverson desliga o telefone. Fernanda era o nome de sua irmã, sempre se pegava perguntando por ela em números estranhos. Mas sabia que naquela cidadezinha do interior só havia uma academia na porta da qual uma Fernanda chorava.
A bolsa rasgada dava indício de que ela lutou por seus pertences. Não conseguiu que se salvassem o celular e a carteira. Cleverson, atento para os detalhes recolhe do chão o batom, o líquido de limpeza das lentes de contato e um pedaço de chocolate parcialmente consumido, envolto pela embalagem amassada.
— Toma aqui, fique calma — disse confiante, sem negar a satisfação de conseguir contato com a beleza daquela menina, perto dos 19 anos.
Ela reteve o choro, respirou fundo, e guardou como pode o que Cleverson lhe ofereceu.
— O que aconteceu? — perguntou, afastando-se um pouco, como que para deixá-la mais confortável.
— Ele levou tudo, rasgou minha bolsa e... — Sem terminar a menina desaba em lágrimas novamente.
— Tente ficar calma, qual é seu nome?
— Fernanda.
— Ok, Fernanda, meu nome é Thiago. Fique aqui que eu vou chamar a polícia.
Omitindo seu verdadeiro nome, Cleverson ponderou, teria mais chance com essa filha da classe média. Tinha verdadeiro horror ao seu nome, sabia que ele denunciava sua condição social, sabia ainda que o sucesso da irmã Fernanda se devia ao nome mais usual que possuía. Se eu me chamasse Roberto ou José, talvez teria sorte diferente, pensava freqüentemente. Mas o destino quis que se chamasse Cleverson e vivesse do seqüestro. Sim, logo depois de confortar Fernanda, ligou para o último número discado de seu celular: CASA.
— Alô, a Fernanda por gentileza?
— Não tem problema, senhora, eu ligo mais tarde.
Ao voltar do orelhão, a menina ainda está lá, parada. Cleverson acena discretamente para o comparsa que a estava vigiando. O plano está saindo conforme combinado, parece ter conquistado a confiança da garota.
— Pronto, já liguei para a polícia, eles pediram para eu te levar até o posto da praça central, para fazer o boletim de ocorrência. Vamos?
— Mas eu tenho que avisar a minha mãe, você pode me emprestar seu cartão?
— Temos que nos apressar, eles podem já ter encontrado seu celular e carteira. Você pode ligar de lá. Vamos?
— Não sei se deveria...
Talvez o plano não estivesse funcionando tão bem, pensou Cleverson. Percebe que estão sozinhos e recorre ao projeto alternativo. Dá um passo em direção a ela, ergue a blusa e mostra sua 9mm cromada apertada contra a barriga.
— Vamos! — ordenou.
Fernanda empalidece. Cleverson acompanha seus olhos procurando socorro e só encontrando seu comparsa parado junto ao poste. No outro lado da rua um ômega preto a aguarda com motor ligado. Ela não tenta pedir socorro, sabe do que se trata. Deve ser forte essa aí, calculou Cleverson, enquanto sua vítima prosseguia seu caminho para o carro em silêncio, como o animal que segue ao matadouro.
Cleverson abre a porta e conduz Fernanda para o banco de trás. Ao seu lado está o mesmo menino que minutos antes a havia roubado. Agora, já despojado do uniforme de trombadinha, transveste-se em roupas e acessórios mais nobres, uma blusa de toca, óculos escuros e fone nos ouvidos. Quem assume o volante é o homem do poste. Cleverson senta no banco do carona, ajusta o retrovisor para si e fica com os olhos atentos na fronte de Fernanda.
A casa aonde chegam é escura e úmida, num dos bairros mais pobres daquele pequeno município. Em quantos quartos como esse o mesmo Cléverson já tinha passado? Não só como cativeiro mas também como lugar cativo esses pequenos cômodos de madeira tinham dominado toda sua vida. Em um desses amontoou-se com seis irmãos, incluindo a Fernanda, por mais de 10 anos.
Ele retirou o capuz de Fernanda e apresentou os cômodos:
— Aqui está o colchão, na jarra tem água limpa. Logo traremos comida. Quando quiser ir ao banheiro bata na porta. Não tente gritar ou fugir senão nós te matamos.
Em silêncio, a garota fita fixamente os olhos de Cleverson. Ele nunca tinha observado uma reação como essas. Normalmente suas vítimas choravam cabisbaixas, razão pela qual deixava por horas o rádio ligado num volume alto. Por um momento esqueceu que se tratava de um seqüestro. Quedou-se imaginando como seria a vida ao lado de uma mulher como aquela.
No outro cômodo, seus comparsas copiavam os telefones mais importantes retidos no celular de Fernanda. Em instantes a bateria acabaria e tudo poderia ser perdido. No topo da lista, em caligrafia infantil, figurava um substantivo: CASA.
Notando a distração de seus colegas e não se contendo diante do olhar fixo da vítima, Cléverson avança. Beija e estranhamente é correspondido num misto de lágrimas e lascívia. Quando percebe que saiu do estado de transe em que se encontrava já está sem camiseta e com Fernanda nua à sua frente, deitada no colchão. A agitação do sexo transforma o pequeno quarto em sauna e todo o resto em silêncio. Um silêncio de suspiros e barulhos imperceptíveis para todos e abafados pelo rádio que tocava os sucessos sertanejos da AM.
Deliciado e saciado, ele emerge do quarto. O suor lhe irriga o rosto. Sem titubear pega o telefone, mas antes avisa:
— Vou ligar para a casa dela, silêncio!
...
— Alô, a Fernanda, por gentileza?
— Ela não está, está na academia, quem gostaria?
— Escute aqui, minha senhora, a senhora é a mãe da Fernanda?
— Sim, sou, quem está falando?
— Quem está falando não importa, o que importa é que a sua filha está correndo perigo.
— Como assim? Ai meu Deus!
— Fique calma minha senhora, eu não vou fazer nada com ela, se você colaborar...
— Por favor, me diga onde ela está! Por favor!
— Você vai ter que ser paciente agora. Não ligue para nenhum número, nem para a polícia, senão eu mato ela. Você não ia querer deixar a Fernanda Costa Faria, em seus 19 aninhos morta, não mãe?
— Não, por favor!
— Você vai fazer o seguinte, vai comprar 30 cartões de R$ 10,00 da sua operadora de celular e vai passar para mim os códigos, para que eu possa continuar a entrar em contato com a senhora. Daqui a trinta minutos eu vou ligar aí e quero que você me entregue esses números.
— Está bem, está bem.
Cleverson ouvia o choro da mãe, sabia que tinha feito um bom trabalho. Sabia que dali trinta minutos teria os códigos. Pela primeira vez sorri. Libera um pouco da tensão e tenta mentalmente refazer os passos de sua vitória. Sabia que a Fernanda desligava o celular toda vez que ia para a academia, nas terças e quintas, onde ficava por mais de duas horas. Sabia seu nome porque mandara uma falsa mensagem dias antes, dizendo que ela ganhara uma viagem pela sua operadora de celular. Atendeu-a, ouviu sua voz doce e coletou seus dados, o telefone da casa, nome, idade e descrição física.
Hesitara por algumas vezes antes de dar o derradeiro telefonema, precisava imaginá-la, possuí-la. Teve que se projetar através das espessas paredes de sua cela, ir ao seu encontro. Imaginou-a como sempre quis, como quis possuir a sua irmã Fernanda, a empregada doméstica bem sucedida, num pequeno quarto quente e úmido. Sim, mais uma vez conseguira, a sudoração dos vários homens empilhados no presídio não o abalava mais. Tinha certeza que eles, lá fora, eram os verdadeiros prisioneiros.

domingo, 12 de agosto de 2007

Sob o olhar da Sociologia dos Problemas Sociais

Como eu já disse, muitas de minhas vontades e dúvidas a respeito dos faxinais vieram depois de uma rápida análise do tema para uma reportagem. Na verdade o interesse surgiu ainda antes, com um primo de um primo meu, cargo comissionado do IAP (Instituto Ambiental do Paraná), que trabalhava com o assunto. Ele me explicou, na época como os faxinais eram tratados com diferenças inclusive dentro das próprias esferas governamentais. Como a SEAB (Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento) queria a extinção dos faxinais, devido ao sistema de criação baixa (porco, galinha e cabrito) solto, em contato com as hortas.

Na internet, a despeito de algumas pesquisas do governo, o único material que encontrei foi a dissertação de mestrado em Economia pela UFPR, de Márcio da Silva, intitulada "A contribuição de florestas de araucária para a sustentabilidade dos sistemas faxinais". O autor trabalha com praticamente toda a literatura sobre o tema, o que não soma mais de cinco ou seis publicações. Entre as definições dos faxinais trabalha com a da professora CHANG, uma das primeiras pesquisadoras a trabalhar com faxinais, que define a composição dos faxinais a partir de características econômico-geográficas. Logo de início Da Silva descarta a hipótese da recente pesquisa da professora Madalena Nerone, que tenta explicar o modo de produção a partir da tradição luso-espanhola.

Portanto, Márcio explica como os faxinais surgiram a partir das condições materiais que aquela população enfrentou, em meados do século XIX, quando a região foi ocupada. As terras, de vasta predominância verde eram exploradas por seus proprietários então apenas para a extração da erva-mate, que faz parte da mata nativa. Dessa forma, eles deixavam que seus empregados habitassem na floresta, com suas criações para subsistência. O que aconteceu é que esses empregados acabaram se tornando posseiros, e o sistema de terras coletivas perdurou, mesmo depois de mudados os proprietários dos lotes. A explicação para a permanência da mata é devido à formação geográfica. O terreno plano, na região, embora de maior profundidade e facilidade, era mais ácido que o de pé-de-serra, ou fundo de vale, como queiram. Por isso as roças eram feitas nos sopés dos montes, devido à fertilidade do solo. Além do mais, a floresta próxima às casas oferecia clima mais ameno e a possibilidade de continuar o manejo da erva-mate.

Me ative, no entanto às definições de faxinais que Da Silva apresenta, já que sua abordagem posterior parte para a área da economia ecológica. Um ramo um pouco diferente do que pretendo em minha pesquisa, embora também fascinante. Ele pretende trazer um modelo de desenvolvimento sustentável, como preconiza a economia ecológica, para dentro dos faxinais. Não que o modelo faxinalense não preserve a natureza, mas porque ele é economicamente inviável. A própria degeneração dos faxinais é prova disso. Eles perdem dia a dia espaço para o agronegócio. Daí a sugestão do manejo do pinhão como alternativa de renda, junto com outras formas de financiamento, como a negociação de créditos de carbono.

O que pretendo, conforme disse no post anterior, é trabalhar a partir do vislumbre da sociologia dos problemas sociais. Algo na linha do que Mário Fuks fez em sua tese de doutorado posteriormente editada no livro "Conflito ambiental no Rio de Janeiro". Nela, o autor, através da análise de discurso, identifica como o tema do meio ambiente surgem em litígios judiciais acompanhados ou impetrados pelo Ministério Público.

Para tanto, Fuks parte da definição do caráter universal do Meio Ambiente. A constituição de 1988 caracteriza como meio ambiente também os aspectos sócio-culturais de um povo. Daí que grande parte das ações ambientais no Rio de Janeiro estarem justamente tratando do ambiente urbano, e não do natural, como seria de se esperar. E dentro do ambiente urbano, tratando quase que exclusivamente da ocupação do espaço urbano. É aqui que, já no começo identifico algo com o tema dos faxinais. Primeiro na universalidade da questão do meio ambiente. Não é de se espantar que a primeira menção a faxinal na legislação brasileira venha justo no decreto que trata da distribuição do ICMS ecológico (Decreto Estadual 3.666/97). Apesar de incluir os faxinais na mesma categoria das ARESUR (Área Especial de Uso Regulamentado), sem, portanto, considerar inicialmente os aspectos sociais, sua consequência é a organização gradativa dos faxinais, e o interesse de algumas ONGs nessas áreas. Essa é uma descoberta de FUKS que gostaria de explorar em meu trabalho, como que determinada lei opera na definição de um problema social.

O caso dos faxinais é emblemático, já que o papel do Estado não vem somente citar e destinar recursos para essas áreas, mas também em propiciar o surgimento de associações, como a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, que surge depois de encontro propiciado pelo IAP, em 2003. A consequência veio em 2006 com o reconhecimento dos faxinais como uma das Comunidades Tradicionais Brasileiras (voltarei ao assunto em outro post). Talvez seja isso precisamente o que pretendo alcançar com esse trabalho. Como o Estado precede a organização social nesse caso. Ou será que o processo seria inverso. Tenho ainda que conseguir acesso ao processo de formação desse decreto de 97, se é que isso é possível. Isso talvez elucidasse algumas das coisas. Fato é que hoje tramita na Assembléia um projeto de lei exclusivamente destinado a reconhecer os faxinais no Paraná e oferecer ao seu povo condições de reprodução social. Tenho o projeto em mãos ele estará num post oportuno, com comentários. Enfim, algumas perguntas permanecem, outras surgem.